quarta-feira

farofas natalinas

Conversando hoje com um amigo por telefone, sobre as comemorações natalinas, ele lamentou que não aguentava mais comer a comida que havia sobrado da ceia. Todas as famílias, politicamente corretas ou não ("lembre das criancinhas da África") se esforçam para que o excesso do cardápio natalino seja absorvido nos dias seguintes pela família, pelo porteiro do prédio, pelo vigia noturno, pelos pobres nas ruas. Desconfio que falta pouco para que, um dia, ao oferecermos uma embalagem para o porteiro ele nos interrogue: "É pernil?" E, diante da resposta afirmativa, alegue que virou vegetariano ou que começou naquele mesmo dia um rigoroso regime. "Meu colesterol não está muito bom", justificará timidamente.

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Olhando o mar da janela privilegiada de um casal de amigos que mora em Santos, diante do forte do Guarujá, vi um enorme cargueiro alemão, vermelho como um extintor de incêndio, seguindo lento em direção ao mar aberto. Carregado, os containers coloridos pareciam as embalagens de presentes empilhadas no pé da árvore de Natal. No seu bojo, os marinheiros trabalhavam alheios a quem estava deitado na areia. Minha amiga prefere ver os transatlânticos, iluminados como o Rex, do "Ammacord" de Fellini. Eles chegam a "incendiar" o apartamento de madrugada. Eu estou lendo "Moby Dick" e só vejo homens com arpões e medo nos olhos.


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É impressionante como, a cada ano, ao pisar na areia da praia, tomamos a decisão de, no futuro, morar no litoral. Tenho vários amigos que, aposentados ou não, já estão concretizando o plano. Eu tenho uma razão científica para pensar assim: nós que saímos rastejando das profundezas salgadas, agora somos chamados para a segunda etapa da Evolução, seja ela qual for.

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Para quem acompanha essa viagem imóvel, me despeço momentaneamente. Nos veremos novamente em 2010, com algumas novidades. E faço votos que todos consigam dar mais um passo em direção ao mar, onde concretizaremos nosso destino.

é nóis na fita, mano

"Carro de Paulista", peça de Mário Viana, é um fenômeno de público (especialmente entre os jovens), sempre com casa lotada. Devo ter visto a peça umas três vezes e, o mais engraçado, foi acompanhar a reação da platéia, que se identificava com os personagens, um grupo de rapazes da periferia e suas aventuras de carro por uma parte da cidade que eles não conhecem, os bairros da Zona Sul. Eles querem acabar a noite acompanhados, mas só entram em fria.

A história ganhou uma versão para telecine e será exibida na TV Cultura dia 19 de dezembro às 23 horas. A direção é de Ricardo Pinto e Silva.

Mário é um dos mais celebrados dramaturgos da nova geração e já teve o privilégio de ver um de seus melhores textos, "Vestir o Pai", dirigido por Paulo Autran. Rubens de Falco, por sua vez, atuou em "Galeria Metrópole", que também vai virar filme. Quando ele encontra um tempinho, tomamos uma cerveja e colocamos a conversa em dia.

segunda-feira

primeiro morreu a voz, depois morreu o corpo

Eles morreram quase juntos. Primeiro foi a voz que, conhecida em todo o Brasil por milhões de pessoas, nunca era acompanhada do corpo. Era uma espécie de consciência coletiva, se a vida fosse um programa de auditório. Em determinados momentos, com a TV ligada na sala e a telespectadora na cozinha destrinchando um frango, a voz anunciava um modelo novo de geladeira ou outro eletrodoméstico para o lar. Ou então "cantava" uma série de números vencedores de um teleconcurso. Quem estava na cozinha enxugava as mãos no avental e se postava diante da TV para conferir o sorteio. Mas ele não aparecia. Apenas sua voz repetia, elegre, a combinação premiada.

Quase em seguida morreu o corpo. Um corpo de uma mulher de 50 anos. Mas ela dizia que era o de uma mulher de 40. A redução na idade só foi conhecida depois de sua morte, porque os jornalistas tiveram acesso a sua certidão de nascimento. Mesmo com 50 anos, seu corpo parecia o de uma mulher bem mais jovem. Seu corpo foi generoso e, se dependesse apenas dele, ela não precisaria mentir.

Morreram quase simultaneamente uma voz sem corpo e um corpo sem voz. Talvez a voz não gostasse do corpo que tinha, não se sentisse confortável ao se ver na tela de TV, esse espelho coletivo, que amplia nossos defeitos e nunca ilumina nossas virtudes. Talvez lhe desagradasse ver revelado, depois de morto, que pintava o cabelo.

O corpo mais velho que queria ser mais jovem, flagrado numa mentira, também gostaria que esse "deslize" fosse ignorado, ou melhor, que nunca tivesse sido descoberto. Mas os tablóides (e não só os tablóides) e os programas de fofoca nas emissoras de rádio e de TV fizeram questão de dizer que ela surrupiou 10 anos de sua vida. As mulheres nunca são poupadas dos pequenos deslizes, das mentiras inocentes que nunca fazem vítimas mortais. Dez anos antes, a idade atual que ela disse que tinha, ela não teria se matado -- a polícia acredita que foi suicídio. Encontraram cartas dirigiddas à família (típico de suicidas) e veneno de rato misturado à comida. Morte dolorosa para o corpo que insistia em se manter mais jovem, contrariando os documentos do cartório, digna de história shakespeareana de subúrbio, narrada por Nelson Rodrigues.

No momento em que todos devem se calar, um pseudohumorista de TV a insultou num post no twitter. Ela que, quando mais jovem, exibia a beleza de seu rosto em novelas de TV, foi julgada e condenada por exibir seu corpo em filmes de sexo explícito.

A voz morreu de morte morrida e o corpo de morte matada (pelas próprias mãos). Só que a voz morreu apenas uma vez e o corpo continua sendo torturado como se o Brasil ainda fosse um porão escuro.

terça-feira

miando na chuva

Tarde de chuva. O gato está deitado ao lado do computador, quase em cima do teclado; a gata dorme no capacho atrás da porta, mas não está ouvindo Chico Buarque. Se ela não odiasse o gato estaria aqui pertinho ouvindo Vanessa da Mata.



sexta-feira

solano trindade

5ª Sinfonia de Beethoven

5ª Sinfonia de Beethoven
Os dois tímbalos
parecem o mundo
partido ao meio

Eu gosto da barbárie dos tímbalos
como de todas as melodias
como de todos os sons
como de todas as cores
como de todas as formas.
Detesto limitações
eu gosto da barbaria dos tímbalos

5ª Sinfonia de Beethoven
Estou sofrendo
como as mulheres do parto
Eu gosto da barbaria dos tímbalos
Chove lá fora
e Garcia Lorca passeia na chuva

Barbusse está cheio de amor de pela vida
e Beethoven escuta a própria Sinfonia
Não sei onde está o fim
nem o princípio das cousas
sei que gosto da barbaria dos tímbalos

Eu sou como a semante
que espera a terra
Eu serei plantado
e meus irmãos repousarão sobre mim
quando eu for uma árvore frondosa
Minha amada está despida para me receber
Seu corpo é como a 5ª Sinfonia
Seus olhos são como a 5ª Sinfonia

 Seus seios
são como a 5ª Sinfonia
A minha amada é universal

Oh! se eu pudesse pintar a 5ª Sinfonia
Chove lá fora
Van Gogh passa em passos largos
 Gauguin está pintando as mulheres das ruas
e eu estou perdido
dentro de mim mesmo
porque não sei pintar
a 5ª Sinfonia de Beethoven

Onde estão os bárbaros?
Onde estão os civilizados?
Onde está o amor?
Onde está o ódio?
Estão na 5ª Sinfonia
As crianças marcham à minha frente
cantando uma canção da esperança

Ouçam todos os que me entendem
eu amo a 5ª Sinfonia de Beethoven
e não quero limites para viver.


De "A Razão da Chama", antologia de poetas negros brasileiros. Seleção e organização de Oswaldo de Camargo, Edições GRD, 1986.

quarta-feira

noite de pau-de-arara

"Foi longa, tumultuada no início, mas terminou entre lágrimas e aplausos a primeira sessão pública do filme “Lula – O Filho do Brasil”, de Fábio Barreto, que abriu terça-feira à noite (18/11) o 42º. Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Baseado em livro de Denise Paraná, que co-assina o roteiro com Fernando Bonassi e Daniel Tendler, o filme percorre a trajetória de Lula desde a infância, saindo de Garanhuns em pau-de-arara em 1952, com a mãe e irmãos, rumo a Santos (SP). Lá, reencontram-se com o pai, Aristides (Milhem Cortaz, de “Tropa de Elite”), alcoólatra e violento, que anos depois é abandonado por dona Lindu. Logo depois, ela e os filhos rumam para São Paulo, depois São Bernardo do Campo, onde Lula (na fase adulta, interpretado pelo estreante em cinema Rui Ricardo Dias) tornou-se operário e sindicalista, antes de entrar para a política."

Leia o relato de Neusa Barbosa, que estava na muvuca

mama áfrica







Essas imagens são algumas que selecionei entre outras 100 que recebi em Powerpoint. Normalmente, essas mensagens são correntes que, se não forem repassadas adiante, antecipam todas as catástrofes que podem se abater sobre o infeliz. Separei essas imagens de trabalhadores e de pessoas comuns que mexem os remos, movem máquinas, transportam utensílios, ou apenas aproveitam a infância para não fazer nada, como um gato. Lembro dos negros baianos lançando suas redes ao mar, desafiando o tempo de forma épica, como os pescadores de Dorival Caymmi; dos trabalhadores com as mãos calejadas que fazem a colheita do cacau, como nos romances de Jorge Amado; das mulheres com suas roupas floridas, como Dona Flor. Mas, acima de tudo, muito além da pobreza, são imagens que inspiram muito apego à vida. São retratos de pessoas minimalistas, que vivem com muito pouco, quase nada, mas não largam o remo. Pena que as imagens não têm o crédito dos fotógrafos.

segunda-feira

“quem não rezou a novena de Dona Canô...”


No céu, velando por nós, Cidinha, a santa neguinha pescada do fundo de um rio; na terra, puxando nossa orelha quando fazemos malcriação, Dona Canô. Da janela azul de sua casa em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, ela acompanha, sorridente, seus filhos brincando na rua. Aos 102 anos, continua atenta a cada movimento que fazemos, como a mãe do filme “Édipo Arrasado”, de Woody Allen, onipresente nos céus de Nova York. Quando precisa resolver um problema muito grande, Dona Canô telefona diretamente para o presidente da República. Provavelmente vai se encontrar com ele no feriado da Consciência Negra, na próxima sexta-feira (20/11), em Salvador, para limpar a barra do filho cantor.

Quando estive exilado no interior, enquanto cursava a faculdade, encontrei uma segunda mãe, muito parecida com dona Canô. Era Dona Didi, mãe de João, Nana, Isa, Zé e Dito. João estudava jornalismo em minha turma. Era sobrinho de um poeta local (o poeta municipal de que falava Drummond?), tocava violão, como seus outros irmãos, que tinham um gosto apuradíssimo por música brasileira e literatura. As irmãs cantavam.

Eu ia pouco à faculdade, pois já estava trabalhando no jornal da cidade. Depois do fechamento, ia para a casa do João, onde filava a bóia e ficava ouvindo os LPs da série editada por Marcus Pereira, revelando a música regional brasileira pouco conhecida no sudeste. Foi lá que ouvi Elomar pela primeira vez, um arquiteto que vivia no sertão, criava bodes e cantava como um menestrel. Conversávamos até tarde da noite e dona Didi estava sempre presente, sentada em sua cadeira (era de balanço?), quase sempre em silêncio. Um dia ela me disse: “Homem tem que usar barba ou bigode”. João e Zé tinham bigode e Dito, barba. Mais de trinta anos depois, quando penso em tirar a barba, lembro do conselho de Dona Didi e vacilo.

Tenho uma teoria de que temos sempre duas (ou mais) mães, que nos confortam quando a nossa está longe ou já se foi.

Quando era criança, uma vizinha de minha família, Dona Lourdes, era uma segunda mãe para nós. Era uma negra sorridente, parecida com a Ella Fitzgerald. Era ela quem matava as galinhas e os patos que minha mãe criava, mas não tinha coragem de sacrificar. Ela é madrinha de minha irmã e ficou muito abalada com a morte de minha mãe. Seu filho mais velho, Miltinho, foi o melhor goleiro que vi em ação na infância. Dava gosto vê-lo voar na direção da bola e cair macio no chão de terra batida, ressecada.

Dona Didi morreu com mais de 80 anos e minha segunda mãe, hoje, é minha última tia carioca, que ainda tem muita lenha para queimar. Mas isso não me impede de tomar emprestado Dona Canô, sempre que a saudade aperta.

sábado

pausa musical



Descobri esse vídeo de Elis em um especial de uma emissora de TV alemã, realizado em 1972. Ela canta "Comunicação", de Edson Alencar/ Hélio Matheus, num cenário publicitário, repleto de "signos" (como se dizia na época) da comunicação global. Detalhe para o comprimento do vestido da moça, bem mais curto que o da aluna da Uniban. Ela canta essa mesma música num especial da TV Globo, um ano antes. Impossível não se apaixonar.



O argentino (nascido na Espanha e que vive nos EUA) Emilio Teubal dá um toque muito pessoal e jazzístico a "Loro", de Egberto Gismonti. Detalhe para o gato junto do piano. Gismonti compôs essa música em homenagem a Hermeto Paschoal.



Por Falar em Hermeto, o bruxo levou seus músicos para o Vale do Ribeira e interpreta uma sinfonia ecológica. Nada mais natural para quem já "tocou" porcos e sapos.  Apresentei a música de Hermeto para um jornalista suíço correspondente de uma revista alemã em São Paulo, entre os anos 80 e 90, e ele se apaixonou. Sempre que ele vinha à minha casa, ficavámos ouvindo Hermeto, Egberto Gismonti, Patativa do Assaré.

quinta-feira

pedra brilhante escurece o país

Os 19.430 habitantes de Itaberá (pedra brilhante em tupi) foram dormir na noite de terça-feira, em meio a uma forte chuva que atingia a região, sem saber que, quando desligaram o interruptor, quase todo o país estava às escuras, procurando uma vela em alguma gaveta repleta de contas velhas, cartões de visita, receitas médicas e pó de algum cupim faminto.

Como dificilmente a grande imprensa vai se dar ao trabalho de visitar a cidade, vou adiantar um pouco do que descobri, apenas nessa viagem imóvel pelo Google.

Itaberá fica no meio de um vale, banhada por dois rios (o Taquari e o Verde), a 318 km de São Paulo. Fotos aéreas, que enfeitam o site da prefeitura, mostram uma cidade cuja área urbana vai aos poucos se esparramando. O vale foi aparado pelos tratores dos proprietários rurais, deixando listras horizontais e verticais na terra, sinais de plantio.

O povoamento das terras entre os dois rios começou, segundo o site Citybrazil, no fim do século XVII, em decorrência da migração de habitantes de áreas de mineração ou de produção do açúcar. “Mas foi a chegada dos mineiros José Rodrigues Simões, Francisco Antônio da Silva e Antônio Joaquim Diniz, que, em 1862, doaram gleba para formação de um patrimônio, na elevação entre os córregos da Água Limpa e Lavapés, afluentes da margem esquerda do ribeirão das Lavrinhas”.

“No local, foi erguida a capela de Nossa Senhora da Conceição de Lavrinhas, na antiga Vila de São João Batista do Rio Verde (atual Município de Itaporanga). Em 1914, a antiga capela foi demolida, dando lugar à igreja Matriz de hoje. Em março de 1871 foi elevada à freguesia e incorporada à Vila de Itapeva da Faxina, passando a Município (Vila) em abril de 1891, com o nome simplificado para Lavrinha, que em 1905 foi denominada Itaberá.

As fotos aéreas mostram uma cidade com pouca área verde no espaço urbano, a igreja matriz e dois campos de futebol, com grama bem cuidada. Não sei se a cidade tem uma avenida Getúlio Vargas, como quase todas cidades brasileiras, mas tem um motivo de orgulho, a bela modelo Renata Bonjesus, uma leonina de 22 anos, cujo sonho é conhecer o Vietnã. Ah, ela também é corintiana.

quarta-feira

à meia luz


Equipamento de segurança: belo desenho de Sapoleka

O que nos conforta diante de uma catástrofe é saber que estamos preparados para enfrentá-la. Inveja, mau-olhado, quebranti? Galho de arruda atrás da orelha. Noé foi o primeiro a sentir essa sensação de alívio quando, obedecendo ordens superiores, construiu sua arca. Só em alto-mar e com uma tripulação inusitada é que respirou aliviado, mesmo estando com as mãos calejadas.

Desde criança defendo que temos de ter por perto equipamentos de segurança indispensáveis para nossa existência: canivete (de preferência suíço, que vem com uma série de pequenas ferramentas úteis em viagens, como abridor de garrafa, tesourinha etc), estilingue (claro que um adulto não precisa mais, mas para uma criança é o equivalente a entrar num saloon do velho oeste com o coldre vazio), chave de fenda, alicate, cortador de unha, um cartela de aspirinas, caixa de fósforo e uma vela.

E foi justamente uma caixa de fósforos e uma vela que salvaram minha vida ontem, quando as luzes se apagaram. Os mais modernos podem substituir os fósforos por um isqueiro a gás, mas os palitos de fósforos são muito mais baratos e ainda podem adquirir outras funções, como furar a cabeça de um charuto na falta de um cortador adequado.

Ontem à noite, acendemos velas de vários formatos e tamanhos, presentes de ocasiões festivas, e deixamos a casa com uma aparência de castelo de romance inglês: meia luz que realçava a profundidade do ambiente, sombras que adquiriam formas curiosas ou até fantasmagóricas. Os gatos pareciam se divertir, desaparecendo do campo visual, mas se arriscando a serem pisoteados.

Hoje no trabalho, um colega lamentou: "tudo na minha casa é digital. Preciso comprar pelo menos um radinho de pilha para saber o que está acontecendo". Eu tenho radinho de pilha e pilhas novas em quantidade suficiente para esperar a chegada do Armagedon. E nosso pequeno rádio, comprado numa viagem ao exterior, muitos anos atrás, ainda tem ondas curtas. Dá para sintonizar a BBC e saber se Londres está sendo bombardeada. Ou ouvir as crônicas do Ivan Lessa.

Antes de dormir ainda li duas crônicas do livro do Nassif, com um castiçal ao lado da cama. Mas, ao contrário de Clarice Lispector, que não apagava suas tochas antes de dormir, assoprei a vela e só acordei hoje, com o despertador de pilha, vendo a luz do sol substituir as turbinas de Itaipu que, naquela altura, já estavam funcionando, mas sem precisão.

terça-feira

da costela de Audrey Hepburn

Quem notar alguma semelhança entre a personagem desse gibi italiano e Audrey Hepburn estará na trilha certa. É Julia Kendall, uma criminóloga criada pelo roteirista Giancarlo Berardi (um dos autores do cult Ken Parker) de uma costela da atriz americana. Lançada também no Brasil, a série é muito bem construída e cada exemplar traz uma pequena obra-prima em quadrinhos. O gibi é todo cinematográfico: sua empregada é inspirada em Woopie Goldberg, um dos policiais é a cara do John Goodman. Os roteiros são muito bem elaborados, com tramas que sempre terminam com uma revelação surpreendente, com muitas reviravoltas. O assassino nunca é o mordomo. Uma mistura de Sherlok Holmes com Agatha Cristie e Alfred Hitchcock.

Estava planejando falar de Julia e consegui um bom álibi: o filme "Infâmia", de William Wyler", com Audrey Hepburn, Shirley Maclaine e James Gardner, lançado neste mês de novembro em DVD. É a adaptação de uma peça de Lilliam Hellman, sobre os efeitos de uma mentira contada por uma criança má que destrói a vida de duas professoras de uma escola para meninas, numa cidade provinciana dos Estados Unidos e, em efeito cascata, atinge outras pessoas também de forma irreversível.

Audrey e Shirley estão ótimas no papel das duas jovens acusadas de serem amantes por uma criança geniosa que não gosta de ser contrariada e faz qualquer coisa para ser o centro das atenções. Quem se lembrar de algo parecido ocorrido em São Paulo, também estará na pista certa. Há alguns anos, vários professores e o proprietário da Escola Base foram presos e injustamente acusados de pedofilia. Antes da verdade ser esclarecida, foram massacrados pela imprensa. Até hoje se fala nesse caso e os jornais, revistas e emissoras de TV que participaram do linchamento posam de inocentes, como a menina mentirosa que sustentou a mentira até nos tribunais.

segunda-feira

em busca do leitor


Laurentino Gomes participou do Festival Literário de Porto de Galinhas, encerrado no último fim de semana. Nessa entrevista ele toca num ponto interessante: o novo leitor e as novas mídias. Depois do best-seller "1808", ele está escrevendo "1822", que engloba o período da proclamação da Independência, pensando em novos "suportes" para sua obra, utilizando todas as potencialidades da internet. Antes do livro ser publicado, ele terá criado uma grande expectativa em relação à obra por meio de um site e do twitter, por exemplo.

Não dá para ficar indiferente a essas novidades tecnológicas que, sem dúvida, podem trazer novos leitores, mas é necessário saber onde pisamos para que o escritor não se afaste do texto e se transforme num mero marqueteiro.

adoçando notícia amarga


Há tarefas que são quase impossíveis no jornalismo e, normalmente, cabe aos ilustradores executá-las. Tarde da noite, fechamento de edições antecipadas, cai no colo do artista um catatau sobre crise cambial, depreciação do dólar, enfim, um tema cabeludo, repleto de jargões e fórmulas matemáticas. Pacientemente, lutando contra o relógio, de sua prancheta sai um trabalho como o que pode ser visto nesta página, de autoria de Carlinhos Müller, do Estadão, que fala por si, sem precisar de algum texto para acompanhamento. É prato principal. É filé de primeira. Pura proteína.

Trabalhamos juntos e varamos muitas madrugadas de sexta-feira adiantando as edições de domingo: eu andava de mesa em mesa procurando notícias para a primeira página (sim, as manchetes de domingo eram definidas na noite de sexta-feira e madrugada de sábado) e Carlinhos fazendo ilustrações e infográficos, que são aquelas tabelas com ilustração que viraram mania nos jornais atuais e roubam espaço das notícias.

Lembro vagamente que ele tocava num banda de rock e sempre conversava com outros jornalistas que também tocavam algum instrumento. Eram noites que demoravam a passar e muitos de nós estariamos de volta no sábado de manhã, depois de três horas de descanso.

Artista premiado, Carlinhos tirava leite de pedra dos assuntos que recebia para ilustrar. E continua fazendo a tarefa muito bem, como demonstra na edição desta segunda-feira (9/11) do caderno de Economia do Estado.

domingo

concurso para bedel


Instituição de ensino superior de São Paulo abre vagas para bedel. Na foto, prova eliminatória, na qual o candidato deverá comprovar seus conhecimentos com as tabelas de pesos e medidas, que serão utilizadas em seu dia-a-dia, na fiscalização da indumentária das alunas. O número de inscritos é superior em 10x1 ao número de vagas.

rodapé: a foto é do filme "Nós que aqui estamos, por vós esperamos", de Marcelo Masagão, que não tem nada a ver com o ensino superior paulista.

coleção outono-inverno


Na foto, modelo afegã a caminho da faculdade.

Graças à globalização, as informações voam mais rápido que pipa no céu em dia de vendaval. Os últimos acontecimentos educacionais paulistas chegaram também às cavernas do Afeganistão onde ainda resistem os bravos talibãs. E é da assessoria de imprensa deles (eles não mandam só cartas-bombas) que recebi um release divulgando a nova coleção de burkas desenhadas especialmente para jovens universitárias, que eles gostariam de ver espalhadas pelo Ocidente.

Os designers de moda talibãs viram no episódio paulista uma ótima oportunidade de estreitar os laços econômicos e culturais com nosso país. A moda agora, dizem eles, não nasce apenas nos desfiles de Milão e Paris, mas explode também nas passarelas de areia e rochas de Kandahar. Reparem que uma das moças (e elas têm olhos lindos, capazes de causar tumultos)têm total liberdade de movimentos nas mãos para usar um telefone celular. Mas os mulás da moda sugerem que o aparelho seja desligado nas salas de aula, para não desviar a atenção do conteúdo pedagógico que está sendo ministrado.

sexta-feira

o que ela viu nele?

Não sei o que essa moça viu no Sarkozy, mas posso imaginar o que ele viu nela. E não é que ela canta bonitinho, daquele jeitinho sussurrante? De perder a cabeça na guilhotina.



Abaixo, Bessie Smith, que colocou esses mesmos versos na boca da loirinha. A canção é de 1929, quando os avós de Carla ainda cantavam a tarantela e Bessie curava alguns porres.

quinta-feira

Milton Hatoum disputa prêmio literário na Irlanda


O romance “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum, é um dos 156 concorrentes ao prêmio literário Impac Dublin, que este ano tem também os portugueses José Saramago ("As Intermitências da Morte") e José Rodrigues dos Santos ("O Codex 632") e o angolano José Eduardo Agualusa ("As mulheres do meu pai").

O Impac é um dos prêmios literários com maior dotação em escala mundial: 90 mil libras (100 mil euros). Participam da edição deste ano títulos de 46 países, escritos em 18 idiomas.

Também concorrem Toni Morrison ("A Mercy"), Aravind Adiga ("O Tigre Branco", título da edição portuguesa), Salman Rushdie (“A feiticeira de Florença"), Philip Roth ("Indignação") e Paul Auster ("Homem no Escuro").

Os livros selecionados para a lista serão anunciados pelo júri do prêmio em 14 de abril de 2010, e o nome do vencedor será divulgado dois meses depois, em 17 de junho.

Qualquer romance pode concorrer ao prêmio, independentemente da língua em que originalmente for escrito, desde que tenha sido traduzido para o inglês.

Hatoum fala sobre o livro ao Digestivo Cultural

quarta-feira

tatus

Tatu 1

Os dois meninos esquentavam aquele tipo de discussão filosófica comum na infância, em busca do argumento certeiro para vencer a disputa: eu sou isso, você não é; eu tenho tal coisa, você não tem. Quando o que parecia mais perto da vitória disparou:

- Minha mãe tem uma tatuagem, a sua não tem!

- Tem sim!

- E onde é?

- Num lugar que ninguém pode ver...

- E como você sabe?

- Porque eu vi.


Tatu 2

No metrô, um rapaz sentou-se no banco dos bobos, aquele que fica de frente para os passageiros sentados do lado oposto do vagão. Vestindo bermudas, ele tinha a perna esquerda quase totalmente tatuada com uma espécie de folhagem com espinhos, que se enroscava e subia por sua perna. No seu braço esquerdo, a mesma folhagem saía de baixo da manga da camiseta e prosseguia a trajetória em direção à mão, como uma planta em busca de sol. Na perna direita, outra tatuagem germinava no peito do pé e seus galhos subiam rumo ao joelho. Na primavera ele será um frondoso tronco em harmonia com a natureza.

terça-feira

a casa da minha infância

Comecei a ler "A Casa da Minha Infância", coletânea das crônicas que Luis Nassif publicava aos domingos em sua coluna na Folha de S. Paulo, reunidas em livro pela Editora Agir. Mesmo escrevendo sobre economia, aos domingos o comentarista de assuntos tão sérios e herméticos abria as janelas e deixava o ar entrar. E alegrava seus leitores. Nesses textos o comentarista econômico tirava a gravata e lembrava histórias de sua infância em Poços de Caldas, Minas Gerais.

Lembranças de escola, de amigos, tios e irmãos me fizeram voltar no tempo e lembrar de minhas próprias memórias de infância. Nada mais parecido e repetitivo que o passado. As lembranças parecem ser as mesmas para todos. Nessa hora, a humanidade é realmente uma grande família.

E ao lembrar da infância, não há como não pensar na morte. Ao olhar para o passado, lembro mais dos adultos do que das crianças. Adultos que morreram naquela época. Meu avô que chegou doente em casa e, dias depois, morreu do coração. O corpo foi velado no cômodo em que eu dormia. Não lembro mais, mas o cheiro das velas deve ter impregnado as paredes por muitos dias.

Mas não esqueço que, anos depois, uma de minhas tias, filha predileta dele, foi ao cemitério acompanhar a exumação e levou os ossos, dentro de uma mala de viagem, para serem sepultados numa cidade do interior, onde ele viveu desde que chegara da Itália. Foi uma longa viagem de trem e os ossos chacoalhavam na mala, acomodada no bagageiro acima da cabeça dos passageiros. Chacoalhavam é por conta de minha imaginação. Na época me fascinava a história de uma mala com ossos humanos sendo embarcada num trem, como uma bagagem comum.

Hoje, as pessoas ainda vivas que guardam essas histórias antigas ou as esqueceram (por não valorizá-las tanto)ou já não têm condições de recordá-las, como meu pai. Cada pedaço dessas histórias, como as publicadas por Nassif, é recolhido de fontes diferentes e remontado pelos filhos e netos. Mas nem sempre os relatos coincidem, às vezes são divergentes. Só nos resta guardar lembranças tênues, suposições, indícios. E montamos nossa história, sabendo que ela não é tão precisa, mas é a única que temos para guardar. Cabe numa mala de viagem e vai chacoalhando pelo caminho.

segunda-feira

[as pedras de saramago]

O Nobel de Literatura José Saramago esteve domingo (18/10) em Penafiel, em Portugal, durante o festival literário Escritaria 2009, onde foi distribuído o prêmio que leva seu nome e lançado seu novo livro, "Caim", que sai no Brasil pela Cia das Letras.

Saramago falou sobre seu livro para uma platéia de 800 pessoas. escrevê-lo, definiu, foi um "exercício de liberdade".

"Não é que este livro seja mal comportado, mas é, sem dúvida, uma insurreição, um apelo a que todos se animem a procurar ver o que está do outro lado das coisas", disse, segundo notícia da agência de notícias Lusa.

O livro conta, em tom irônico, a história bíblica de Caim, o filho primogênito de Adão e Eva que matou Abel, seu irmão mais novo, num acesso de ciúmes, após verificar que Deus mostrara preferência por este. "Nada disto existiu, está claro, são mitos inventados pelos homens, tal como Deus é uma criação dos homens. Eu limito-me a levantar as pedras e a mostrar esta realidade escondida atrás delas", afirmou o escritor.

Leia a nótícia completa:

terça-feira

a volta

Saio bem cedo para o trabalho, na terça-feira pós-feriado da Cidinha, e cruzo no metrô com quem aproveitou os três dias de ócio até o último minuto. Ao contrário de feriados anteriores, ninguém volta com o rosto rosado. Sem sol (apenas alguns raios fugazes conseguiram furar a camada de ozônio e a placa compacta de nuvens escuras)os paulistanos regressaram tão pálidos como eram quando partiram. Sem o sol, que é o que se persegue quando se busca refúgio fora da cidade, o máximo que se encontra são casas e apartamentos abarrotados de gente, uma espécie de embaixada de Honduras, repleta de bigodudos que não nos deixam dormir em paz. E tome jogo de baralho, e tome domingão-do-faustão e tome datena. E tome futebol, jogo do Palmeiras, da Argentina, do Corinthians, com aqueles comentaristas sorridentes. Longe das casas e dos apartamentos sitiados, só mesmo passeios no calçadão da praia e na praça da cidadezinha, onde os bancos estão molhados e a grama crescida. As horas passam lentas e se contam os minutos para o regresso.

sexta-feira

suco de gadu



Ouvi pela primeira vez essa moça com jeitinho sapeca, sotaque forte carioca, na Rádio Eldorado. Ela cantava uma música de Chico Buarque, "A História de Lilly Brown", cuja letra nunca tinha prestado muita atenção, mas que decidi procurar. O mais difícil foi guardar o nome dela. Acabei reencontrando-a na internet quase que por acaso. A partir daí, achei seu disco e não canso de tocar.

Nessa entrevista saborosa, ela conta que sua primeira música foi composta quando ela tinha 10 anos ("Shimbalaiê", que está aí em baixo). Ao ouvi-la ao violão, com as duas pernas magrelas cruzadas sobre o banco, percebe-se muitas referências: Marisa Monte, Djavan, Chico Buarque, Milton Nascimento. É como se todos fossem batidos no liquidificador e dessa mistura saísse um suco de Maria Gadu - doce mas não melado, refrescante, saboroso, revigorante. Para mim é a melhor revelação da MPB dos últimos anos, sem marketing, sem jabaculê. E no youtube, está ao alcance de todos.




quinta-feira

Herta Müller vence o Nobel de Literatura


o site da revista Época acaba de divulgar a escolha da alemão Herta Müller para o prêmio Nobel de Literatura:

[A Academia Sueca premiou nesta quinta-feira (8) a alemã Herta Muller com o Nobel de Literatura por conta de seus inúmeros trabalhos que retratam a vida sob a ditadura socialista de Nicolau Ceausescu na Romênia. Segundo o comunicado oficial da academia, Herta, “com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, retrata a paisagem dos despossuídos”.

Herta Muller nasceu em 17 de agosto de 1953 em Nitzkydorf, uma pequena cidade na Romênia de maioria alemã, comunidade da qual seus pais faziam parte. De acordo com a biografia de Herta no site oficial do Prêmio Nobel, seu pai foi, durante a Segunda Guerra Mundial, membro das Waffen SS, o braço armado do Partido Nazista, responsável por algumas das maiores atrocidades da guerra. Com a derrota da Alemanha, muitos romenos de ascendência alemã foram deportados para campos de trabalhos forçados na União Soviética, como a mãe de Herta, que passou cinco anos no que é hoje em dia a Ucrânia.

Em seu livro mais recente, Atemschaukel, de 2009, Herta retrata justamente o exílio desses romenos na URSS. A experiência tratada em suas obras anteriores – com a mesma temática da vida sob uma ditadura socialista – é mais recente.

A única obra de Herta Muller em português foi publicada pela Editora Globo (a mesma que publica ÉPOCA) em 2004. É o livro O Compromisso, tradução de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet (1997), feita pela escritora Lya Luft.]

Leia a notícia completa

segunda-feira

Conto inédito de Roberto Bolaño na Internet


Bolaño: a bela desordem na mesa de trabalho.

A bela revista digital "60watts" publica um conto inédito do escritor chileno Roberto Bolaño, morto em 2003 aos 50 anos. "El Contorno del Ojo" foi enviado nos anos 1980 para um concurso literário na Espanha, mas permanecia inédito até agora. O site do jornal português "Jornal de Notícias" revela que o texto é a história de um oficial do exército chinês e poeta em convalescença numa aldeia, que regista as suas inquietações num diário. Bolaño obteve o terceiro lugar do I Prémio Alfambra de Cuentos, organizado pela Câmara Municipal de Valência em 1983.

Diz o jornal que foi nesse concurso que o chileno conheceu o escritor argentino Antonio di Benedetto (1922-1986), que ficou em segundo lugar e com quem iniciou uma relação de amizade por correspondência. Partindo da história real do jovem escritor que merece uma menção honrosa num prémio literário e descobre que entre os vencedores está um autor que admira, Bolaño escreveu depois outro conto, "Sensini", que faz parte do livro "Llamadas Telefónicas".

Em "Sensini", o personagem homônimo que representa Di Benedetto considera de "primeira ordem" o conto do seu novo amigo e insta-o a não abandonar os concursos literários. O jornal português comenta: "Hoje, não há dúvidas de que Bolaño persistiu, mas quando Di Benedetto morreu, em 1986, o chileno era ainda um desconhecido, sem imaginar a universalidade que recentemente a sua obra alcançou, ou que seria considerado, ainda que após a morte, o escritor que renovou a literatura latino-americana".

Leia o conto

domingo

[mercedes]



A nova geração talvez não conheça a argentina Mercedes Sosa, cuja morte foi anunciada hoje (4/10). Mas para minha geração ela foi uma voz forte num período difícil que enfrentavámos não apenas no Brasil como em quase toda a América Latina. Eram os anos de chumbo que nos mergulharam num pesadelo tenebroso.

Descobri Mercedes Sosa e a chilena Violeta Parra em 1979, junto com o também chileno Victor Jara, assassinado pela ditadura de Pinochet. Nos anos 80, Milton Nascimento gravou algumas músicas de Violeta Parra e fez dueto com Mercedes em "Volver a los 17", uma letra belissima de Violeta sobre o envelhecimento, comparando-o aos seus reflexos inexoráveis na natureza, como o musgo que cobre lentamente a pedra.

Nesse víeo do Youtube, Mercedes canta uma música que também fala em envelhecimento, com a bela letra do cubano Pablo Milanes, que também fez parcerias com Chico Buarque, depois que o ar daqueles anos de chumbo foram se tornando mais respiráveis. No Brasil essa música foi gravada por Simone.

sábado

[de volta para o futuro]

Foto de Ricardo Stucker

[Do blog do Luiz Nassif ]

"De volta da caminhada, encontro na calçada o grande Evaldo Dantas, dos grandes jornalistas da história, um pouco avançado em anos. Ele me vê, abre um sorriso e diz: “Mas o que está acontecendo? O Brasil está explodindo no mundo”.

Respondo que não acreditava que fosse viver para testemunhar o que virá por aí.

Ele sorri, com a sabedoria dos muito velhos: “Eu não vou viver para assistir. Mas sei que acontecerá”.


Trabalhei com Evaldo Dantas no começo de minha carreira e tenho a sorte de encontrá-lo com alguma frequência na casa de amigos comuns. Amigo de dom Paulo Evaristo Arns, é autor de grandes feitos, como a histórica entrevista com Klaus Barbie, que encontrou escondido na Bolívia, nos anos 60 e rendeu um livro.
Se ele acredita, eu não tenho como duvidar.

segunda-feira

uma promessa de vida



Meu LP Elis& Tom, lançado em 1974, chia mais que uma cafeteira italiana e a agulha dá saltos dignos de Baryshnikov. Segundo uma pesquisa feita nos Estados Unidos, décadas atrás, "Águas de Março" foi considerada uma das 10 melhores músicas de todos os tempos. E essa versão, interpretada pelos dois (durante as gravações, no estúdio americano)foi a que acabou imortalizada. Os dois cantam com uma alegria irresponsável de criança. No finalzinho, Elis aparece com um cigarro entre os dedos, que deve ter filado de alguém no estúdio, e a fumaça dança entre os dois.

Tom, que sempre teve excelentes letristas como parceiros, como Vinicius, aqui mostra que também sabia trabalhar com as palavras. Lembrei da música hoje, durante uma chuva forte que caiu em São Paulo, com as águas de setembro abrindo a primavera, que costuma ser a estação de nossas flores aquáticas. Ah, hoje já tenho o CD que não tem os inconvenientes do LP, mas cujo som não se compara ao original, dizem os especialistas. Eu não entendo dessas questões técnicas, mas as vezes eu coloco o disco velho, para tentar voltar no tempo, mesmo com os chiados e os pulos da agulha.

Joana francesa



Nara Leão canta ao violão a música tema de Joana Francesa, composta por Chico Buarque para o belo filme de Cacá Diegues, com Jeanne Moreau, que foi homenageada pelo Festival do Rio.

Esse é meu primeiro post com conteúdo do youtube. Sempre que encontrar algo legal quero postar aqui, também no contexto de uma viagem musical e afetiva. Tirando as bobagens de sempre, o youtube tem um acervo com imagens e músicas preciosas, como essa apresentação de Nara.

Gosto dos versos em português misturados aos versos em francês. Um verso começa em português e termina em francês e vice-versa. Ou mesmo a brincadeira com o som das palavras nas duas línguas: accord e acorda, o mar maré bateau que lembra "o mar me arrebatou", dependendo do sotaque de quem canta. Coisas de Chico Buarque.

domingo

[entender a natureza humana]

"Na minha vida, todos os filmes, mesmo os que não foram bem-sucedidos, construíram quem eu sou, não só a atriz, mas principalmente a mulher. Minha vida toda é dedicada à tentativa de descobrir a natureza humana. Temos uma vida que nos é dada e precisamos fazer alguma coisa com ela. Não só ganhar dinheiro, casar, ter filhos, ficar velhos e morrer sem entender porque estamos neste mundo. Temos que buscar respostas. E eu sempre tive uma enorme curiosidade em relação à vida. Tenho certeza que morrerei sem ter entendido a natureza humana, mas não vou deixar de tentar."

Jeanne Moreau esteve no fim de semana no Rio, convidada do festival de cinema que agita a cidade, e concedeu várias entrevistas. Tirei a declaração de uma entrevista que ela concedeu à Folha de S. Paulo na sexta-feira. No texto, o repórter praticamente se desculpou ao afirmar que conseguiu ficar apenas 40 minutos com a atriz, devido a sua agenda apertada. Mesmo assim, a rápida entrevista traz reflexões importantes de uma atriz madura que, aos 81 anos, ainda nos faz lembrar de filmes inesquecíveis, como "Jules e Jim", de François Truffaut, e "Joana Francesa", de Cacá Diegues, que ela filmou no Brasil, com trilha sonora de Chico Buarque.

"Orson [Welles] me dizia que ser ator é como ter nascido em um trem que ficará rodando por décadas sem parar. E você precisa ter todo o necessário em uma mala. Guarde nessa mala sua história, ideias, emoções. Não deixe nada para trás. E você a usa quando o personagem pede.
Quando tenho que retratar um ser humano nascido da imaginação, estou a serviço não só do diretor mas dessa pessoa à qual entreguei minha carne, meu rosto, minha voz. Me entrego completamente para criar algo novo, que tem tudo de mim, mas que não se parece comigo.
E, quando acabo um filme, me separo totalmente do personagem. Algumas vezes nem vejo os filmes prontos. Porque já vi o filme de perto demais."



quinta-feira

quando o homem acabar, o gato vai voar

Enferrujada, a Torre Eiffel vai tombar depois que os homens que cuidam de sua manutenção tiverem virado pó.

Não, esse não é o título de um texto de cordel. É uma história de ficção científica contada por diversos especialistas que tentam provar que de ficção ela não tem nada. O que aconteceria com a humanidade se um dia a raça humana se extinguísse? O History Channel reuniu especialistas de diversas áreas da ciência e propôs essa questão. Na semana passada assisti ao primeiro documentário da série, que continuará nas próximas semanas (hoje, 17/9, às 22 horas, será transmitido o segundo filme). Fiquei muito impressionado com os relatos dos cientistas e a incrível simulação gráfica de como ficaria o mundo com a hipotética extinção da humanidade. O que aconteceria com os prédios, as grandes obras de engenharia, os livros, os filmes, as máquinas, a natureza, os animais? As hipóteses levantadas pelos estudiosos são fascinantes e levam a uma resposta praticamente unânime: a Terra, sem o homem, será um planeta muito melhor: os peixes e as baleias voltarão a povoar os oceanos, os rios se libertarão das tubulações em que estão aprisionados sob as cidades, as florestas se recomporão e... os gatos vão voar!!
A explicação para uma possível mutação genética nos gatos é muito interessante: Com o fim do homem, os edifícios virarão esqueletos e servirão de moradia para os gatos que voltarão a caçar ratos e outros pequenos roedores, mas acabarão não retornando a parte baixa das edificações, pois correriam perigo de vida ao serem caçados pelos cães, que se lembrarão que um dia foram lobos. Por isso os gatos pularão de prédio em prédio e acabarão desenvolvendo alguma espécie de elasticidade no corpo que permitiria que planassem, como pequenas asas-delta peludas. Claro que meu gato não conseguiria, pois com o tamanho de sua barriga, se esborracharia imediatamente e desmoralizaria os cientistas.
A grande questão em discussão é que, com exceção das pirâmidades, talvez não sobre nada que comprove nesse futuro imaginado que um dia o homem pisou na terra. Os livros, as obras de arte, as invenções, as máquinas, vão se decompor depois de centenas e até milhares de anos. Recomendo o programa com um entusiasmo de criança.


O site da Net traz a seguinte sinopse do programa de hoje:

"Neste episódio, estudaremos o que ocorreria com os corpos que a humanidade deixaria para trás. A maioria está embalsamada e enterrada, mas outros estão mumificados e congelados criogenicamente. As pirâmides talvez existam para sempre. As cidades vão desaparecer. Nossas maiores obras primas vão desmoronar e desaparecer. E nossas garrafas de plástico formarão enormes ilhas flutuantes vagando pelos oceanos por milênios. O Mundo Sem Ninguém leva em conta a redução total do nosso impacto: o desaparecimento do ser humano. A intrigante noção do futuro pós-humano do nosso planeta (um exercício de imaginação fascinante explorado por cientistas e estudiosos) é exaustivamente explorado nesse especial do The History Channel através de um vívido imaginário e cativante computação gráfica. Viaje com O Mundo Sem Ninguém a lugares ao redor do mundo já enfrentando esse processo. Ficaremos impressionados pelas mudanças ocorridas depois de apenas algumas décadas na fantasmagórica cidade de Chernobyl, abandonada em 1986, e nas cidades costeiras do Maine. Essa produção acelera o relógio através de séculos no futuro para mostrar uma Terra sem os humanos. Especialistas em engenharia, botânica, ecologia, biologia, geologia, climatologia e geologia fornecem respostas a muitas perguntas provocativas. O que aconteceria com a Terra se os humanos desaparecessem? Todas as nossas obras desapareceriam do planeta? Quanto tempo isso levaria? As espécies ameaçadas de extinção prosperarão ou a exterminação continuará pacificamente? Não é o nosso futuro. É o futuro do planeta."

segunda-feira

o país mais triste do mundo

Nossas mães sempre nos disseram que o dinheiro não compra a felicidade, mas nós nunca acreditamos. Talvez a descrença tenha origem ao cair por terra a famosa lenda materna de que a mistura de leite com manga é uma composição química letal, como juntar corintianos e palmeirenses no mesmo estádio de futebol. Mas, no caso do dinheiro, acredito que elas estavam certas.

Eu conheci um povo infeliz, apesar do privilégio de viver num país tecnologicamente avançado, onde a pobreza foi superada há várias gerações. Na verdade, esse povo não chega a ser propriamente um povo, pois é formado por vários tipos étnicos que vivem no mesmo território, mas praticamente não se misturam. Hindús, malaios, chineses, americanos e europeus por algum motivo decidiram viver ou passar alguns anos de suas vidas em Cingapura e lá continuam apesar de serem observados permanentemente por câmeras de segurança e se sentirem sempre culpados de estarem fazendo algo errado. Entrou num banheiro público e não deu descarga? Jogou a bituca do cigarro na rua? Se for flagrado, pode ser processado e multado. Quer mascar chiclete?, pegue seu passaporte e vá para outro país.

Lembrei de Cingapura, um antigo porto de piratas, nos últimos dias ao observar que alguns bares de São Paulo (na verdade betequins) colocaram na calçada cinzeiros improvisados (caixas de madeira ou latas) para que seus frequentadores, que não podem mais fumar no recinto fechado, possam jogar as pontas de cigarro quando saem para fumar na rua. Estive em Cingapura uma vez, a trabalho, e confirmei muitas das histórias que eram contadas em tom folclórico. Nesse país, obcecado pela higiene e limpeza, fiscais e câmeras vigiam os cidadadãos e os turistas o tempo todo. Nas ruas, junto às floreiras, cinzeiros gigantescos foram colocados para que os cidadãos apaguem seus cigarros. Os radares que flagram os motoristas cometendo alguma infração de trânsito, já emitem as multas que caem direto na conta bancária do cidadão. Em caso de infrações mais graves, açoite com uma vara.

Cingapura é um dos tigres asiáticos e cresceu nas últimas décadas com sua eficiência e alta tecnologia. Atraiu uma multidão de imigrantes que concordou em abrir mão de sua individualidade e privacidade para ganhar dinheiro. Conversei com uma italiana, gerente de um grande hotel, e ela me disse que não via a hora de voltar à confusa e maluca Itália. Só estava ali por dinheiro, mas não era feliz. Não tinha amigos. As pessoas só conviviam no ambiente de trabalho.

Quando estive em Cingapura, na inauguração de um vôo que tinha como destino final a África do Sul (nas vésperas da eleição de Nelson Mandela), um adolescente inglês (ou americano, não me lembro direito) estava preso e seria açoitado por ter pichado alguns automóveis estacionados numa rua. Seus pais, que não viviam no país, pediam clemência à Corte. O prefeito de Washington, por sua vez, bateu palmas e disse que a medida seria extremamente didática em sua cidade, vítima dos vândalos do spray. Cheguei a enviar algumas reportagens de lá sobre o assunto.

Foi o país mais limpo e organizado que eu já conheci, mas foi onde me senti mais inseguro. Toda a beleza à minha volta era artificial, construída com ajuda de alta tecnologia. Depois de conversar com a gerente do hotel, passei a prestar mais atenção às pessoas que encontrava na rua e pude perceber que elas eram realmente tristes, não sorriam nunca.

Hoje Cingapura voltou ao noticiário porque começa a sair lentamente da crise financeira internacional que golpeou fortemente os tigres asiáticos. Triste tigre que ainda está sem forças para rugir. E sorrir.

Salve Salve

Quando ele tiver carteira de motorista, abastecerá com gasolina do pré-sal (foto do Blog do Planalto)

Numa postura patriótica, o sol bateu continência hoje no feriado de 7 setembro. Acho que pela primeira vez em mais de 30 anos liguei a televisão para ver o desfile em Brasília. Gostei da cavalaria, dos Dragões da Independência, mas me assustei com uma espécie de divisão equestre da tropa de choque da PM. Todos de negro, pareciam sósias de Darth Veid montados a cavalo.

O desfile acabou de uma forma estranha. O comandante, num tanque de gerra conversível, parou diante da tribuna e falou algo, gesticulando, sem microfone. Lula e Sarkozy balançaram a cabeça em sinal afirmativo, como quem diz, "não entendi nada, mas é melhor não provocar um cara enfezado dentro de um tanque de guerra."

Nos céus, a esquadrilha da fumaça francesa e a brasileira fizeram uma longa demonstração soltando baforadas no ar. Em São Paulo, como se sabe, aviões fumantes são proibidos por lei.

domingo

quintais de uma grande família

Foto de uma cerca mineira, feita por Lena

De Lena, no blog de Luis Nassif:

De mandacaru à taquara rachada, elas faziam divisas apenas pra constar que estavam ali - davam continuidade aos quintais tornando toda a vizinhança numa grande família.

Quintais que uniam Silvas , Souzas, Ferreiras, Teixeiras, Nogueiras e quem mais adviesse ali.

E a gente… meninos, de todas as cores e todas encardidas e pernas marcadas de cicatrizes, esfoliações que se curavam sozinhas ou a base de mertiolate, saltávamos por entre árvores, fumávamos cigarrinho de talo de chuchu, porque chuchu e pé couve não faltavam em quintal nenhum e ainda fazíamos das folhas das bananeiras gangorras que se projetavam gingantemente ribanceira a baixo

Lembro-me o dia que nessa brincadeira, minha irmã foi sapecada por uma taturana cachorrinha, gritou horas e horas até ser benzida pelo vizinho curandeiro, que alisou uma pedra em cruz com leite acompanhada de rezas, muita reza.

O domingo está terminando

18h00. Palmeiras e São Paulo empatam sem gols, Belchior continua desaparecido, mas alguém disse que ele agora mora em uma cabana no Uruguai. Mas desde quando o Uruguai teve cabanas? Quem é Belchior, pergunta um menino fadado a ser como seus pais daqui a alguns anos, um simples rapaz latino-americano. Onde é o Uruguai?, retruca outro que só conhece a Disney de país estrangeiro, onde se fala português fluentemente. Na TV a cabo, um casal de cantores, com uma filha linda de poucos meses no colo, canta uma música de Roberto Carlos em hebraico, dizem que é tema de uma novela da Globo. Rubens Barichello não ganhou a corrida, mas também não saiu nenhuma mola de seu carro e o GP terminou sem muitas emoções. Na calçada de minha rua, um grupo de mulheres conversa e uma delas aproveita para pintar as unhas dos pés da colega. No lado oposto, onde há um bar, um grupo toca violão e canta com voz embriagada na calçada. O chão está coberto por tampinhas de garrafa de cerveja e, na rua, muitas afundaram no asfalto como restos de estrelas salpicando nosso chão. A temperatura está morna, como o resto da cerveja nos copos dos cantores. Dentro do bar, o dono, um português de 70 anos, completamente sem sotaque, conversa com os frequentadores mais assíduos, que já têm o direito de abrir a geladeira e pegar a própria cerveja. Há dois meses, um maluco entrou no bar e o atacou com um machado, sem nenhum motivo. Apesar da idade, o comerciante conseguiu se desvencilhar e saiu apenas com alguns cortes rasos na cabeça. O homem foi preso mas já está solto. Todos os moradores da rua foram ao bar, até mesmo aqueles que nunca bebem, para saber se ele estava bem. Eu também ouvi a história de sua própria boca e fiz inúmeras perguntas. Ele sempre deixa eu levar a cerveja, com a promessa de devolver a garrafa depois. E eu devolvo. O domingo caminha para um fim melancólico, como de praxe. Li só um pedaço do jornal, mas não tenho a mínima vontade de ler o resto. Já está velho. A gata está dormindo e o gato desaparecido pelos telhados. Daqui a pouco ele volta faminto e com cara de assustado. Para ele nada muda na rotina domingueira. Amanhã começa tudo de novo.

sábado

Quilombolas em Osasco

Osasco, na Grande São Paulo, recebe a exposição fotográfica Quilombolas - Tradições e Cultura da Resistência, que já circulou por 14 cidades brasileiras e cinco da América Latina. Nesta versão, estão programadas 13 exposições no estado de São Paulo. O material faz parte de um livro. A exposição contém 33 fotografias em preto-e-branco.

Também serão realizadas atividades paralelas com a apresentação de grupos de Capoeira, Jongo e Maracatu. A mostra abre neste sábado (29/8) e a visitação vai até 2 de outubro. As atividades são gratuitas. Marcos Bogato participa da organização do evento.

Local:
Centro Municipal de Formação Continuada dos Profissionais de Educação
Avenida Marechal Rondon, 263 - Centro
(11) 3682-1246

sexta-feira

neblina parnasiana

São Paulo em dia de Rimini, sem a praia fria e sem Fellini.

São Paulo amanheceu nesta sexta-feira como o set de Amarcord, de Fellini, coberta por uma neblina pesada que permitia a visão de apenas alguns palmos à frente do nariz. Ao abrir as cortinas do quarto, às 6 horas da manhã, vi apenas alguns galhos das árvores do jardim furando uma nuvem densa de algodão doce. Segui os antigos conselhos de minha mãe e não me agasalhei muito. Apesar do frio curitibano, sabia que em menos de uma hora o sol surgiria forte e dissiparia o nevoeiro. Quando liguei o computador, vi a notícia de que os aviões estavam colados nas pistas dos aeroportos paulistas. Os pilotos, seguindo orientação das torres de controle, esperavam a ordem para decolar. Mas, mesmo sem essas ordens, bastava telefonar para suas mães para saber que o sol logo derreteria a serração. Na minha infância, neblina era serração e gripe era resfriado. Nos anos 60, quando eu ia para a escola chutando pedras com meu Vulcabrás de bico desbotado, o caminho era todo fechado pela neblina matinal. No intervalo do recreio, quando sol já estava forte, surgia uma bola e durante uns 30 minutos nos aquecíamos com um jogo rápido e às vezes violento no páteo. Ao som da campainha, voltávamos para a sala de aula, suados e eventualmente sangrando. Mas não era nada que motivasse preocupações maiores.

Na verdade, olhando para trás e forçando um pouco a memória, éramos quase invisiveis para os professores. Lembro do professor de português, no terceiro ano do ginásio, que lia poemas de Raimundo Corrêa, enquanto dava baforadas num cigarro espetado numa piteira preta. Não lembro se ele jogava as guimbas no chão ou se apagava o cigarro num cinzeiro. Pobre professor, hoje teria seu diploma cassado e não poderia mais lecionar em São Paulo. Perseguido só por ser parnasiano.

quarta-feira

o que é um jardim?

"O que é um jardim para um beija-flor no seu ninho?", pergunta Ricardo Blauth, autor da foto.

"Será um jardim só aquilo que descreve o dicionário?", indaga o artista plástico Ricardo Blauth, um de nossos seguidores, no blog Os Jardins da Garopaba. E ele questiona novamente: "Não será a areia da praia o jardim do mar?"
Eu tento, pacientemente, reconstruir os jardins da minha infância e atrair os pássaros que os frequentavam. Colho sementes nas ruas e lascas de galhos que coloco na água a espera que criem raízes. Lhes dou um novo endereço e uma nova oportunidade de vida, como se participassem de um programa de proteção à testemunhas e precisassem de abrigo depois de cumprirem uma missão importante. Pelo menos uma dessas plantas, que hoje oferece lindas flores roxas, já não existe mais no endereço original de onde foi capturada. Cedeu o lugar para um muro. Uma muda de bananeira, que ganhei de um amigo, se proliferou de tal forma que tive de conter seus avanços para que não ocupasse o lugar de uma ameixeira que surrupiei com menos de um palmo de altura de uma calçada do bairro e que hoje já está com quase um metro.

segunda-feira

o valor de um poema

“A rigor, o valor de um poema define-se pela sua linguagem. Como há 5 mil anos foram feitos milhões de poemas e o poeta vai repetir aqueles mesmos temas, penso que somente a linguagem pode ser o diferencial na forma de colocar estes temas. Mas não é só isso: é preciso que a linguagem se transforme no fenômeno poético! O que é isto? Esta é uma questão que gostaria mesmo de polemizar, por isso algumas frases provocativas. Ser poeta é visualizar outro estado de ser. Vejo a poesia como um ser vivo e sagrado em seu desdobramento mítico e inviolável. O conteúdo de um poema só é bom quando instala o estranhamento, o mistério, a indagação. Só é bom quando se afasta do transitório, da banalidade, da babaquice, em direção ao eterno. A arte é ainda uma catarse. Exige nosso sangue. A poesia circula nas veias do poeta, na angústia de ser poeta. O verdadeiro poeta transcende os limites da percepção rotineira. A verdadeira poesia rompe o tecido conceitual da realidade, cria uma nova tessitura poética, mais real, irreal, surreal em sua essência (....) O lugar do poema é no limiar da metáfora, embora a poesia moderna privilegie a metonímia, é a metáfora que dá emoção à poesia. Mas emoção, como dizia Ferreira Gullar, não é emocionalismo barato. O bom poema necessita de contida elaboração, mas a técnica por si só pode tornar-se inútil e estéril se não veicular a poesia (....) Tenho lido muitos poemas em meus 65 anos, no entanto, parece que quase todos dizem la stessa cosa. O mais patético, hoje, são aqueles que fazem ‘experiências’ com a palavra sem nada a ver com a poesia”.

Osmar Pisani
(1936-2007)

terça-feira

“Vim te buscar, meu amor! Vamos embora”


A dupla Bonnie & Clyde foi vista em Itapevi.

A frase, completada por um beijo, não foi dita por Humphrey Bogart a Ingrid Bergman, no filme Casablanca, numa tentativa vã de impedi-la de embarcar naquele teco-teco com um cara muito esquisito chamado Victor Laszlo. Ele não disse essas palavras mágicas e ela, mesmo querendo ficar, partiu com o esquisitão. E o velho Bogart, que dizia estar sempre três doses acima da humanidade, se contentou em voltar para seu bar na companhia do chefe de polícia, dizendo que ali nascia uma grande amizade.

O verdadeiro autor da frase foi o namorado de Paula Vezicato, uma morena bonita, de olhos grandes e vivos, por quem é fácil se apaixonar. Ele abriu a porta de sua cela e ela saiu. Mas não era uma prisão metafórica. Era uma cela da cadeia de Itapevi (SP). Os dois se abraçaram e ele disse a frase de galã. Cinco minutos antes, numa ação também cinematográfica, ele havia invadido a delegacia, armado, e rendido os poucos policiais presentes. Se ele não fosse bandido, seria herói. Bruce Willis. Num gesto ainda mais generoso, abriu todas as celas e libertou outros 17 presos. Schwarzenegger. Tudo foi rápido e sem violência. Não houve troca de tiros. Mesmo fulminante, o amor só atingiu o casal-bandido.

A polícia chegou atrasada, mas conseguiu momentos depois prender oito dos fugitivos e localizar o carro usado na fuga. Mas nem sinal da moça. Ela já estava em local seguro. Os moradores da cidade, um dos pequenos municípios da Grande São Paulo que se transformaram em cidades-dormitórios, deram entrevistas aos jornais populares e se disseram preocupados com a falta de segurança. Preocupação desnecessária porque o bandido apaixonado, como foi batizado pelos jornais, já realizou sua proeza e não voltará mais a atacar. A não ser que sua amada seja novamente presa. Mas, certamente, o casal vai ser mais cuidadoso daqui por diante e ela não se deixará mais ser abordada em um carro roubado, com a bolsa cheia de pedras de crack .

quarta-feira

Maui e Ilana

Maui é a da direita, sem óculos.

Eu acredito no Deus dos gatos. Quando tudo parece perdido para eles, eis que ocorre um milagre. A vida desses bichos está repleta de pequenos milagres. Às vezes eles ocorrem à luz do dia, à beira de uma estrada de Petrolina, por onde passam automóveis e caminhões, romeiros arrastando cruz, homens que venderam a alma ao diabo numa encruzilhada deserta. Os locais perigosos e ermos e os mais mal frequentados são sempre os mais propícios para as aparições divinas. Falo do Deus dos gatos, evidentemente. Maui é testemunha de um milagre. Se não o carro no qual viajava sua salvadora não quebraria a poucos metros de onde ela estava.

Hoje, ela dorme numa cama quente e não precisa perambular mais pelas ruas cobertas de pó, onde os poucos restos de comida encontrados são disputados por crianças esfarrapadas e sem nenhum Deus que cuide delas. A dona de Maui não sabe que não existe o acaso na vida de humanos e felinos, que eram deuses em outras eras e se comportavam como tais. Ela também não sabe que, a partir de agora, sua vida ganhará outro rumo. Com um desses pequenos e antigos deuses andando sem cerimônias por seu apartamento, ela será testemunha de pequenas transformações à sua volta: estará mais atenta a quem precisa de sua proteção, receberá cargas de energia nos momentos em que estiver triste e desanimada; dará muitas risadas com algumas perantices de sua mascote; terá alguém com quem conversar e trocar confidências; ganhará uma fonte nova de inspiração para seus escritos e uma ouvinte atenta para suas histórias. E essas histórias certamente se enriquecerão com a formação de uma nova dupla literária. A mais jovem toma leite e a mais experiente talvez já tenha descoberto que existem bebidas melhores que coca-cola.

terça-feira

Yes, we can... eat rucula


Fiquei sabendo hoje pelo blog Literatura Cotidiana, onde escreve o Marco Bogato, que o Obama quase perdeu a eleição porque come rúcula. Fui pego de surpresa e pesquisei na internet algumas referências sobre o assunto. Durante a campanha Obama comentou, num estado produtor de milho, que o preço da rúcula estava os olhos da cara (the eyes on the face). Bastou para que os mais conservadores americanos o chamassem de elitista. Um político ligado a Bush pai disse que precisou procurar o que era rúcula no dicionário. Me espanta que ele soubesse a utilidade de um dicionário, além de substituir pés quebrados de camas ou servir de suporte para o monitor de computadores.

Nos EUA, candidato que honra o nome e as calças tem de comer aqueles horrorosos e gordurentos churrascos de hamburguer, regados de cerveja aguada, quase choca. É como nossos candidatos que só mostram a força de seu caráter quando sentam num aprazível botequim e degustam uma saudável buchada de bode, com o suor escorrendo em bicas pela fronte.

Pobre Obama, homem elegante, casado com uma bela mulher (as americanas invejam seus braços longos e firmes) e pai de duas lindas filhas, que arrumam sozinhas a cama e ajudam a lavar os pratos depois do jantar. Fico imaginando o cardápio da família, que não deve ser divulgado para não assustar ainda mais os eleitores conservadores.

No Brasil, a rúcula é bem popular e pode ser encontrada em duas versões: a hidropônica (cultivada em água com nutrientes) e a tradicional, que cria raízes na terra. Eu prefiro a que brota da terra, cujo gosto é um pouco mais amargo, mas mais saboroso, principalmente com tomates, regada a azeite e limão.

domingo

[primeiro, matam nossos girassóis...]


Apenas um campo de combustível?

[o progresso, decididamente, parece ser inimigo da beleza e da poesia. Brecht alertava que, enquanto dormimos, inimigos invisíveis se aproximam e pisam nas flores de nosso jardim e avançam gradativamente em suas crueldades. Na cidade de Novo dos Parecis (MT), máquinas gigantescas estão pisando e esmagando um campo amarelo de girassóis para transformar essas flores imortalizadas por Van Gogh em óleo comestível e biodiesel.

Li a notícia no jornal Valor Econômico de quinta-feira (30/7). E, ilustrando o texto, uma foto do campo, com as flores do sol espetadas na ponta de caules firmes com seu gigantesco olho amarelo observando o fotógrafo, mas ainda não cientes do perigo que correm. Na visão moderna do pintor holandês, o quadro poderia estar representado por embalagens de óleo ou por caminhões se movimentando nas estradas, movidos pelo combustível ecológico. Lembrei dos bebês focas do Canadá, sacrificados por serem belos e frágeis.

Quando os artistas semeiam o campo, os investidores chegam com suas máquinas; quando as flores desabrocham, são ceifadas e esmagadas. Por que o belo tem que ser sacrificado? Por que a beleza tem que ser fugaz? Deixem as flores morrerem de velhice, deixem-nas perderem as pétalas, uma a uma, e cumprirem seu ciclo. Façam combustível da mamona, da soja e de outras plantas que nunca abriram olhos tão grandes e deslumbrados para o mundo. E nunca inspiraram poetas e artistas. Poupem essas fontes de beleza e deixem que sejam lembradas pela maciez de suas pétalas, pelo design de suas formas e por suas cores quentes. Deixem que elas alegrem os campos e nos façam esquecer da aridez das cidades. Deixem que elas simplemente existam com a única finalidade de nos encantarem.]

quinta-feira

[um ônibus sai do alabama e passa por goiás]

Em 1955, Rosa Parks estava nesse ônibus, que circulou na quarta-feira em Rio Verde, Goiás.

[depois do protesto dos executivos em São Paulo que ergueram barricadas nas ruas com suas pastas 007 e notebooks com conexão wireless, contra a proibição de ônibus fretados em alguns bairros da cidade, foi a vez de uma voz solitária, de uma mulher persistente de Rio Verde (GO) fazer valer seus direitos, lembrando a resistência pacífica de Gandhi. Mesmo longe do congestionado trânsito paulistano, por coincidência o motivo do protesto da aposentada Luzia Jesus de Oliveira, de 60 anos, foi também o transporte coletivo.

Ela entrou no ônibus e exigiu não pagar a passagem por ter 60 anos e direito a receber esse benefício legal. O motorista não concordou e pediu que ela descesse. Suponho que educadamente. Ela bateu o pé: não. O motorista também foi cascudo: então ele não sairia do lugar pois recebera ordens da empresa de não permitir a carteirada de idosos. Ela não arredou pé. Os demais passageiros, já atrasados em seus compromissos, saíram do ônibus. Ela ficou sozinha em seu assento, o motorista no dele. Creio que houve um silêncio abissal entre ambos, até a chegada dos jornalistas (diplomados e não diplomados), com sua parafernália de câmeras, microfones, rotativas, estilingues (para autodefesa, claro) e bolas de gude. Se fosse no boxe seria uma luta fadada a terminar em empate técnico; se fosse no xadrez, a partida teria que ser interrompida e reiniciada no dia seguinte. Mas o palco era uma cidade brasileira e o motorista sacou sua última carta, digna de países localizados abaixo da linha do Equador: "vou chamar a polícia".

Dona Luzia não se intimidou, como não se intimidaram os engravatados e as mulheres de terninho de São Paulo, equilibradas em saltos que só perdiam em altura para o Edifício Itália. Pois chame, que eu não sou estudante da USP (na verdade quem usou esse argumento irrefutável foram os manifestantes paulistanos, lembrando sutilmente que a tropa chamada pela reitora baixou o porrete nos alunos da USP em greve). Só faltou o rádio do ônibus tocar o Hino Nacional, pois o que ela falou naquela hora estava carregado de fervor cívico, salve, salve: "Estou aqui para defender minha classe. Não só os idosos de Rio Verde, mas de qualquer lugar do Brasil. Eles têm que aprender a respeitar a terceira idade".

Uma funcionária do serviço de trânsito da cidade, Idelma Lopes da Silva, interveio com a força de seu cargo: "Você leva a moça até o destino dela. Se alguém da empresa questionar, você diz que é ordem da Secretaria Municipal de Transportes". O motorista, imortalizado pelas câmeras de TV no papel de vilão dessa novela rioverdana (até sua mãe o odiou naquele momento), engatou a primeira. O motor do ônibus roncou preguiçosamente, a porta foi fechada e Dona Luzia seguiu sua viagem, gratuita, até seu destino. Ela estava atrasada, mas saiu de alma lavada e engomada com anil. Ela abriu a janela, sorriu e fez um sinal de positivo com o polegar da mão esquerda (será que, além do mais, ela é canhota?) para delírio de fotógrafos e cinegrafistas que colocaram Rio Verde em horário nobre.

Há 54 anos, Rosa Parks, uma costureira negra que se recusou a dar seu lugar a um passageiro branco, num ônibus na cidade de Montgomery, no Alabama, desencadeou um movimento de boicote contra o transporte coletivo da cidade e fortaleceu o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos e a luta contra o segregacionismo. Hoje o ônibus no qual Rosa Parks foi barrada pode ser visto em um museu. O ônibus de dona Luzia circula livremente por Rio Verde, levando outras pessoas idosas que, a partir de agora, se sentirão apoiadas para também reivindicar seus direitos.]