sábado

Vergonha de ser escritor

José Roberto de Alencar, cego de um olho, mas que tudo via. Grande repórter, que partiu cedo demais.

Sou de uma geração em que os jornalistas tinham vergonha em apresentar um novo cartão de visitas: escritor. Claro que o cartão é metafórico, como as frases futebolísticas do Lula. Pois (tenho usado muito essa muleta jornalística, preciso me policiar mais) os jornalistas dos anos 70 tinham vergonha de dizer que eram escritores. Nossos chefes de reportagem e editores separavam as duas atividades nitidamente: jornalista é jornalista e escritor é escritor. Não se misturam, não se autofecundam como algumas espécies de flores. Eramos de uma geração perfeccionista, que tinha de dar certo. Só pensávamos e praticávamos jornalismo. Durante o dia apanhavámos da polícia nas passeatas de metalúrgicos e de estudantes e, à noite, enchíamos a cara trocando idéias nas mesas dos botequins próximos das redações, como o Mosca Frita (era o nome fantasia que inventamos) e o Miranda, perto da Folha de S. Paulo, por onde passaram bons jornalistas (pelos bares, não necessariamente pelo jornal). Nós que estavámos começando na profissão, mostravámos nossas matérias uns para os outros e fazíamos comentários e críticas. E aproveitavámos, também, a convivência com jornalistas da geração anterior à nossa, como Ricardo Kotscho e José Roberto de Alencar (repórter brilhante e já falecido) e outros não tão famosos, mas que sabiam lidar com as pretinhas, como chamávamos as teclas das máquinas de escrever que usávamos.

Éramos jovens jornalistas, estávamos aprendendo a ser jornalistas e tínhamos bons professores nas redações. Queríamos escrever de forma cada vez mais clara e desenvolver leads (o primeiro parágrafo da reportagem, que funciona como resumo de todo o texto) bem construídos, criativos, bem humorados. O lead bem feito e criativo era o cartão de visitas do jornalista, motivo de orgulho.

No Jornal da Tarde não existia lead. O trabalho era mais autoral, inspirado do New Journalism americano. O repórter se envolvia na apuração, se colocava na matéria, emitia opiniões. Era um texto mais próximo do literário, por isso mesmo mais soltos, sem as amarras dos manuais de cada redação. Alguns faziam isso muito bem: Marcos Faerman (já falecido), Valdir Sanches, que era repórter policial, Percival de Souza, também repórter policial. E muitos outros. Mais que jornalistas, eram escritores, mas não se julgavam escritores. Para eles, a literatura era coisa mais séria, como se o que eles faziam não tivesse o mesmo nível de seriedade. Depois eles publicaram livros, depois viraram escritores, oficialmente. Para os editores daquela época, só era escritor quem publicava livros. E nosa geração não tinha tempo para publicar livros. O jornalismo nos absorvia full time (outra expressão da época).

A grande questão que nos atormenta ainda hoje é onde termina o trabalho do jornalista e começa o do escritor. Garcia Marquez é escritor, mas seu passado como jornalista também influencia seu texto. Lembro de uma reportagem que ele fez nos anos 80 sobre a fuga de cubanos em balsas improvisadas para Miami. O lead começava mais ou menos assim: "No dia X, o remédio X estava faltando nas farmácias de Cuba". Era um remédio para enjôo. Todos os que iriam se aventurar no mar (valei-me São Dorival Caymmi) haviam comprado pastilhas contra enjôo antes de partir. E a partir daí seguia a reportagem. Até hoje me arrepio ao ler esse texto. Começaram a ser publicados, se não engano no ano passado, os trabalhos de Gabo como jornalista, que incluem reportagens, entrevistas, críticas de cinema.

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