terça-feira

noir veneziano

Notas para a criação de um detetive noir: um gondoleiro veneziano que divide seu tempo entre conduzir turistas em sua gôndola e desvendar crimes.

Nome: Nino
Características pessoais: Barrigudo (bom disfarce para um detetite), careca e com o rosto marcado por crateras deixadas por uma adolescência infestada por acnes. Quando está sozinho em sua gôngola, costuma cantar canções napolitanas, que ouvia da mãe, uma enfermeira apaixonada por Ugo Tognazzi.

Prato predileto: pasta e fagioli (prato típico veneziano, a base de feijão e macarrão). Bebe cerveja Moretti, birra muito popular na Itália.

Informantes: Nino usa como informantes vendedores do mercado de peixe (costuma ser rápido nas conversas, pois o cheiro do local é insuportável), um negro que vende óculos escuros perto na estação ferroviária (mas é uma fonte difícil de ser localizada, pois está sempre fugindo da polícia, com medo de ser deportado), um fiscal de vaporeto e um restaurador de quadros, especializado em Tintoreto.

Clientes: Como em toda história noir, seus clientes são mulheres deslumbrantes (perfil no qual se encaixam quase todas as italianas a partir dos 12 anos de idade), que tiveram o marido assassinado por algum misterioso personagem ligado à Mafia.

Devido ao seu porte físico avantajado, encontra dificuldades na tarefa de seguir suspeitos. O fato de se deslocar com uma gôndola, também não ajuda muito, pois é sempre obrigado a parar a investigação para receber passageiros. Se não fizer isso, pode ter sua licença suspensa pelas autoridades. Por esse motivo nunca conseguiu solucionar um caso sequer durante o verão (mas nunca volta de bolsos vazios para casa).

Nino mora numa espelunca (uma água furtada parece ser ideal), onde divide o espaço com um gato que sobreviveu a três quedas no Grande Canal. Desde então, o felino se recusa a deixar o quarto e só sai da cama para usar sua caixinha de areia. O bicho ficou tão gordo quanto o dono e tem dificuldades respiratórias, o que o obriga a respirar de boca aberta. Nino, que tem pouco tempo livre, sente a consciência pesada por não poder cuidar melhor do animal.

Segue.....

quarta-feira

coração centenário

Me considero um sujeito de sorte. Se tivesse descendentes, poderia reuni-los numa noite de outono (a melhor estação do ano), provavelmente em abril (o mês mais sonoro do ano) para dizer-lhes como sou felizardo por ter desembarcado nesse planeta e ter sido testemunha de pelo menos quatro fatos que não mais se repetirão na história da humanidade:

1)Comício das Diretas - Eu passei pelo Comício das Diretas Já,no Anhangabau, depois de sair do trabalho, no prédio dos Diários Associados. Peguei o elevador no 11º andar (ou seria o sétimo?), cumprimentei Carioca, o ascensorista paraibano que tinha por hábito aparar as unhas com um canivete, e caminhei da rua 7 de Abril até o Viaduto do Chá, passando pelo Mappin e pelo Teatro Municipal. O movimento era típico do centro à noite, quando as pessoas ainda iam ao cinema, às compras ou tomavam um último gole antes de voltar para casa. Me debrucei sobre as muretas do Viaduto do Chá, como num camarote do Teatro Municipal, e vi aquela massa humana, calculada em cerca de 1 milhão de pessoas. Não lembro se foi antes, ou depois, que assisti a um show do baterista Art Blakey, talvez o último que fez no Brasil, naquele mesmo teatro, naquela hora vazio.

Já tinha passado pelo mesmo viaduto, não sei se meses ou anos antes, também saindo do trabalho, no mesmo edifício da 7 de Abril, depois de uma passeata de estudantes. Havia uma névoa formada pelos gases das bombas que haviam sido lançadas pela polícia. Foi a primeira vez que senti cheiro de gás lacrimogêneo. Havia uma tensão no ar, mas naquele momento apenas os transeuntes caminhavam apressados pelo viaduto. Eu era um deles.

2) Cometa Halley - O cometa Halley, que passa pela Terra a cada 76 anos, me envaideceu ao voltar em 1986. Não vi sua cauda ou cabeleira pois a poluição de São Paulo cobre nossa visão do céu com um manto negro intransponível. Mas cheguei a escrever uma matéria para uma revista sobre o visitante ilustre. Talvez meu avô o tenha visto em 1910, em sua penúltima passagem pela Terra. Na roça, onde vivia, sua visão foi mais privilegiada que a minha.

3) O show Falso Brilhante - Vi o show de Elis Regina no Tuca, em 1976, e me arrependi de não ter assistido Trem Azul. Nunca mais a vi no palco. Quando ela morreu, em 1982, minha mãe me ligou para saber como eu estava. Eu ainda trabalhava no mesmo prédio dos Diários Associados. A namorada de um amigo que trabalhava comigo, reporter da rádio Globo, havia dado a notícia minutos antes. Jovem e intrépida, burlou a segurança dizendo que era da família e constatou que os rumores eram verdadeiros. Vi na televisão a multidão que parou a avenida Brigadeiro Luis Antonio no velório realizado no Teatro Bandeirantes. Fiquei muitos anos sem ouvir os LPs dela.

4 - Centenário do Corinthians - Ontem, à meia noite, ouvi uma grande queima de fogos, digna de final de campeonato. Não estava mais no prédio dos Diários Associados, que ficou para trás, mas em minha casa, assistindo a um DVD. Eram os corintianos do bairro que comemoravam o centenário de fundação do clube. A cena se repetiu em toda a cidade. Meu coração também bateu mais forte. Eu era personagem da história.