sábado

[patricia highsmith]

Essa moça me tirou o sono certa vez. Tinha viajado para o exterior a trabalho e levei um de seus livros na bagagem. À noite, no quarto do hotel, abri a obra e imaginei ler algumas linhas antes de dormir. Não consegui parar até chegar à última página, quando o dia já estava amanhecendo. Essa é Patricia Highsmith, romancista e contista de primeira, criadora de um dos mais interessantes assassinos da literatura: Tom Ripley, personagem, se não me engano, de quatro romances. Talvez seja mais fácil rotular o gênero literário adotado por Patricia como literatura policial, mas, na verdade, suas obras possuem uma densidade psicológica que dificilmente é encontrada no gênero noir, povoado de detetives durões, loiras fatais, investigações que dão reviravoltas e acabam chegando a um culpado insuspeito.
Nos romances de Patricia Highsmith não interessa quem vai morrer, porque sua morte já está traçada desde o início da obra.
O que importa é entrar na cabeça do criminoso e entender seus motivos. Alguns de seus livros foram adaptados para o cinema, mas nem todos bem realizados. Ela própria não gostava da maioria das adaptações. Talvez uma das melhores adaptações seja seu romance de estréia, Pacto Sinistro, filmado por Alfred Hitchcock.
Nos anos 60, O Sol por Testemunha, primeiro romance com Tom Ripley, foi adaptado com Alain Delon no papel de Ripley, com um final

completamente diferente do romance. Eu prefiro o final dela, sem punição.

Win Wenders filmou o segundo livro do personagem, O Amigo Americano, com melhor resultado, com Dennis Hopper. E, mais recentemente, foi feita nova versão hollywoodiana de O Sol Por Testemunha, que se chamou O Talentoso Ripley (fiel ao título original) com Matt Damon no papel principal. Não vi esse último filme ainda.

Impossível ler dois livros de Patricia na sequência. Você termina a leitura literalmente acabado. É preciso um tempo de depuração.

Melhor intercalar a leitura com um texto mais leve para que você não perca o mínimo de crença na humanidade.

Se em seus livros ela não nutria nenhuma piedade por seus personagens, na vida real nutria um respeito profundo pelos animais. Em Catástrofes (nem tanto) naturais, os animais se vingam de forma cruel de seus donos pelos maus tratos a que foram submetidos.
Patricia nunca teve nos Estados Unidos o reconhecimento que merecia e viveu a maior parte de sua vida na Europa, em pequenos vilarejos entre a França, a Itália e a Suíça, praticamente reclusa. Quase não dava entrevistas e exibia um rosto fechado, marcado por rugas profundas, que nem de longe lembravam a moça bonita que um dia foi fotografada segurando um gato de encontro ao peito.


















["se me aparece a frase, paro e escrevo"]

Gatos e literatura, pela escritora portuguesa Hélia Correia, na revista Time Out de Lisboa
[há sujeições que posso tornar públicas e essas são os gatos e a escrita. Devo dizer que reconheço nas duas entidades semelhanças.

Talvez os gatos e a escrita tenham vindo do mesmo ovo que um deus fertilizou. Instalaram um trono vitalício dentro da minha vida desde cedo. Incorporei-os tão intensamente que nem sei onde acabo e eles começam. Há uma simbiose que pertence à mais baixa biologia. Mas a palavra simbiose é mal escolhida. Eles viveriam muito bem sem mim. Eu, sem eles, é que não. E sabem isso. Sabem perfeitamente que dominam.

Comportam-se ambos com igual sobranceria. Vêm se querem, quando querem, para que os sirva, mas se sou eu a convocá-los, não me ligam. Se entendem que lhes devo abrir a porta, chamam às horas mais desconfortáveis. Lá me levanto, às quatro da manhã, ou para escrever ou para deitar whiskas no prato. A retribuição é coisa pouca: um roçar pelas pernas, uma frase. E eu, ciente da minha condição, renunciando à dignidade humana, agradeço a bondade do incómodo.

Estou sempre preparada para o encontro: na mochila carrego com comida para felinos... e um caderno. Se me aparece um gato, faço a vénia, mio delicadamente e dou o almoço. Se me aparece a frase, paro e escrevo.

Sempre de momentos breves, porém intensos e definitivos. Passa-se nisto o tempo de calor. Pelos começos do Outono, surgem hóspedes dispostos a estadia prolongada: o gato fica de pensão completa, passa os meses do frio e vai-se embora. A escrita permanece em casa pelo mesmo período. Os meus gatos de Inverno adoram chuva. A minha escrita só consegue organizar-se em texto quando chove. De Março até Outubro, o que reúno das raras frases que consentem aparecer resulta em pequenos contos. Mas enquanto andam nuvens negras pelo céu, a corrente entre a escrita e os meus dedos alcança nível proporcional à pluviosidade da estação.

Com a subida geral das temperaturas e a saarização deste país, é de fazer ideia que decorrem os dias e os meses e os anos sem que essa energia das palavras que me caem do céu “como farrapos” possa gerar um livro que se veja. Bem procuro imitar um clima nórdico, espalhando em roda certos objectos, tais como o pau-de-chuva do Peru, o quadrinho de areia branca e negra que vai caindo com a gravidade, criando a ilusão de um temporal, uma canção dos LadySmith, Mambazo, Rain, Beautiful Rain, que o Changuito me trouxe, uma caixa de música com o Singing in the Rain… Formam como que um templo de oferendas e é dentro dele que me escondo, à espera.

Porque escrevo frase a frase, hoje uma, outra não sei quando virá, inseridas num esquema musical que determina a sequência. Não é maneira de fazer romances, mas quem sou eu para dizer à escrita que devia tentar ter disciplina?

Estou feliz porque a gatinha que me apareceu este Inverno não tenciona emancipar-se tão depressa. De chuva, pouco vejo. Mas talvez a escrita aceite aqui morar por algum tempo, como esta extraordinária Emily Duncan. É gatinha com nome de escritora – Emily Brontë – e de Isadora, inspiração eterna. Desde que ela apareceu começamos as manhãs a dançar. Se pela noite, surgir uma pequena, amável frase, talvez que finalmente nasça um livro.]

sexta-feira

[meus tipos inesquecíveis]

[1975. Chegou à redação onde eu trabalhava, no interior de São Paulo, um jornalista do Rio de Janeiro. Caboclão gordo, dentes tortos, olhos pequenos e quase totalmente fechados, lentes grossas equilibradas no nariz largo, disfarçava a barriga com uma camisa larga por fora da calça. Suava exageradamente e tirava a toda hora do bolso um lenço para secar a fronte, ensopada e oleosa. Do outro bolso puxou uma carta de apresentação assinada por um jornalista carioca de renome. Anos depois, ao lembrarmos de sua passagem pelo jornal, nos demos conta que aquela carta amarrotada, colada com durex, de tanto ser aberta e fechada, era o que lhe abria as portas em jornais da provincia. Na verdade, pelo que lembrávamos da carta, o tal jornalista famoso não se comprometia em nada, apenas dizia que ele era uma grande figura, pau pra toda obra, para também não se comprometer em demasia.

Ele chegou na companhia do dono do jornal e foi apresentado como o novo editor-chefe, que nunca o vira na vida, mas se encantara com sua figura carismática. Para mim e mais três ou quatro colegas que ainda estavam na faculdade, era a oportunidade de conviver com alguém da velha guarda e aprender as malandragens da profissão. Ele pegava a caneta, corrigia nossos textos datilografados e descia as matérias para a gráfica. Sua letra era horripilante, mas Alberto, o chefe dos linotipistas, era calejado e conseguia decifrar os garranchos. Quando não conseguia, interpretava e escrevia sua versão, que era a que ficava gravada de forma definitiva nas linhas de chumbo cuspidas pela linotipo. E saía no jornal do dia seguinte. Depois do fechamento íamos para o bar e ele se equilbrava no tamborete ao lado do balcão e debelava suas chamas internas com cerveja e um destilado amargo intragável. E nos contava suas histórias nas trincheiras dos jornais cariocas. Nos embriagávamos com as histórias da profissão. Separado da mulher (naquela época o divórcio ainda não havia sido legalizado), ele tinha um filho adolescente que não morava com ele, batizado com o nome de um compositor clássico alemão. No meu aniversário me deu de presente um livro de contos de Guimarães Rosa, com bela dedicatória. Tenho o livro até hoje, afinal é um Guimarães Rosa.

A rotina era o trabalho diário e, depois do fechamento, a ronda dos bares. Com o tempo notamos que suas mãos tremiam, um dos sintomas do alcoolismo. Não conseguíamos acompanhá-lo na bebedeira e, inevitavelmente, éramos sempre nós que pagávamos as contas. Também lhe emprestávamos dinheiro, apesar de nossos salários serem irrisórios perto do dele.

Mas ele cativava a todos com suas histórias de boêmia e de aventuras na companhia de figuras lendárias do jornalismo. O dono do jornal estava encantado: lhe alugou uma casa e foi seu fiador, um dos colunistas lhe comprou os móveis da sala em prestações. E o dinheiro que faltava no fim do mês ele nos tungava em empréstimos nunca pagos. E o tempo foi passando.

Um dia ele não foi trabalhar. Nunca mais voltou. Desapareceu deixando para trás a casa com vários meses de aluguel atrasado, pagos pelo dono do jornal, e o carnê dos móveis também no vermelho. Anos depois, quando já havíamos saído do jornal e prosseguíamos nossas carreiras em outras redações, um amigo daquela época me telefonou. Perguntou se eu lembrava daquele jornalista e disse que o tinha visto casualmente na rua, agora em São Paulo, pedindo esmolas, sujo e com as roupas em frangalhos. Ao ser reconhecido, ele se justificou: não era nada do que meu amigo estava pensando. Ele estava apenas disfarçado para fazer uma reportagem sobre o submundo dos mendigos e moradores de rua. E lhe pediu alguns trocados.]

quinta-feira

[bruma]

[são Paulo amanheceu coberta por uma névoa tênue, cor de leite desnatado. As pessoas que seguiam para o trabalho soltavam fumaça pela boca. Mas ainda era uma fumaça rala, não era fumaça curitibana, densa e branca como a de um charuto potente. É um dedo do inverno querendo chegar à cidade, abrindo caminho para se instalar de forma sorrateira.]

quarta-feira

[bola na rede]

[a psicanalista, escritora e blogueira (não necessariamente nessa ordem) Elianne Diz de Abreu, que também é Laura Diz, ou vice-versa, participa de uma coletânea de textos que reúne, entre outros craques, Juca Kfouri, José Roberto Torero, Luiz Zanin Oricchio, Humberto Werneck, José Castello e Xico Sá. São contos, poemas, crônicas e ensaios sobre a grande paixão nacional, o futebol. Tem gente que acha que essa é a segunda grande paixão, mas deixa pra lá. O livro sai pela Editora Casa das Musas e custa R$ 25. Haverá lançamentos em várias capitais:
Recife, 9/6 – Bar Mamulengo – Recife Antigo, 19h
São Paulo, 10/6 – Livraria Cultura, Shop. Villa-Lobos, 19h30
Rio de Janeiro, 15/6 – Livraria Travessa – Barra Shop, 19h30
Brasília, 19/6 – Livraria Cultura – Shop. CasaPark, 19h.

Se ela vier a São Paulo, pedirei seu autógrafo, junto com o de outros amigos e colegas que também dividem os créditos com ela. Bola pra frente Elianne! E muito sucesso nos lançamentos.]

[onde os peixes voadores nadam}

[na verdade não sei onde eles nadam, mas não deve ser em águas muito tranquilas, já que vira e mexe estão batendo asas acima da superfície do mar. As águas onde Ilana, nossa nova seguidora, mergulha também não devem ser repousantes. Seu texto, no blog Onde os peixes voam, permite enxergá-la como um exemplar raro, que não morde a isca facilmente. Ela se autodefine: "Estudante de idade irrelevante, apaixonada por cinema e um bom livro." Vejam como o blog dela é bonito e seu texto, envolvente.]

segunda-feira

[encontro marcado]

[tão bom quanto ler é conhecer pessoas que gostam de ler e conversar com elas sobre o que nós mais gostamos - ler. Escritor e leitor são feitos do mesmo abecedário, são alimentados pelas palavras. Alguns se lambuzam tanto que até se intoxicam. Como sou preguiçoso, estou sempre em regime, magrinho.
Neste próximo fim de semana vai ser realizado um encontro entre escritores e leitores no distrito de São Francisco Xavier, em São José dos Campos, durante o Festival da Mantiqueira, promovido pela Secretaria da Cultura de São Paulo. É o segundo ano do evento, uma espécie de Flip caipira (sem nenhuma conotação pejorativa). A novidade deste ano é que estará presente o escritor Cristovão Tezza, vencedor de todos os grandes prêmios literários do país com seu livro "O Filho Eterno", um vertiginoso mergulho na alma do escritor e de seu filho, Felipe, portador da Síndrome de Down. Livro forte, que nunca cai no melodrama ou na pieguice. Quero escrever mais amanhã sobre esse evento de São Francisco e de outros semelhantes existentes no país. Se alguém já participou de algum, podemos trocar figurinhas.]

Veja toda a programação do festival:

sábado

[nariz de gato]

[por uma dessas tragédias que só vitimam as mulheres e que as tornam frágeis presas do acaso, ela só percebeu ao chegar ao trabalho que uma de suas meias de seda preta, que tanto valorizam suas pernas bem feitas, estava com um fio puxado, de cima a baixo. Rasgo notável a quilômetros de distância, na sua avaliação severa. Navalhada implacável em briga de mulheres.
Mas, com a astúcia que também só ocorre às mulheres, usou a tragédia em benefício próprio. Para não tirar as meias, puxou outros fios, agora das duas pernas, e criou um modelo novo, com riscos verticais. Para os homens, tão alheios à moda mas tão atentos às pernas femininas, não poderia passar despercebido, a quilômetros de distância.
Um colega se aproximou e perguntou: "Seu gato te atacou antes de sair de casa?" E apontou suas pernas. Com o raciocínio rápido, que só as mulheres e os criminosos de alta periculosidade sabem esgrimir em sua defesa, ela respondeu: "Não tenho gatos, não suportaria morar com alguém que tem o nariz mais empinado que o meu". E sorriu. Felinamente.]

quarta-feira

"O que me justifica no mundo é a literatura"

[marçal Aquino está sendo bem recebido em Portugal, onde acaba de sair “Cabeça a Prêmio”, pela editora Quetzal. Em entrevista ao site português Diário Digital disse que considera "muito difícil escrever" e “quase impossível escrever bem”. Como um bom jogador, ele não entra em campo de salto alto. Mas não devemos nos iludir, ele possui um texto enxuto, preciso, digno dos melhores ficcionistas brasileiros contemporâneos. A entrevista foi concedida ao jornalista Pedro Justino Alves. Separo aqui apenas alguns bons momentos, respeitando a grafia lusitana:

Em Portugal, além de "Cabeça a Prêmio", da Quetzal, estão editados "O Invasor" e "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios", ambos editados pela Palavra. Como qualifica estes três livros no conjunto da sua obra?

São livros que pertencem a um ciclo de narrativas longas, depois de ter publicado um conjunto de volumes com narrativas curtas. Tematicamente, são livros que falam, cada um à sua maneira, de realidades ásperas e típicas do Brasil contemporâneo.

Nos três livros a violência acaba por ser transformar num personagem próprio, inclusive, em determinados momentos, o personagem principal da narrativa. Essa violência ganha vida própria como acontece geralmente com os personagens ou, pelo contrário, é de certa forma mais recatada e surge na narrativa quando você pretende?

Pratico uma literatura de corte realista, que se apoia muito na realidade ao redor para se tecer. Infelizmente, a violência é, neste momento, um dado bastante presente no mundo real do Brasil. Logo, se ela não aparecesse nas minhas narrativas seria meio fraudulento. Mas a violência é apenas um elemento que utilizo, nunca assumindo vida própria.

A sua escrita é muito directa, como um gancho de direita num combate de boxe. Deve ser um processo de escrita estafante. Ou não?

Eu acho muito difícil escrever. Escrever bem, então, me parece quase impossível. É tarefa de mestres, aos quais presto humildes reverências. Considero a tarefa mais árdua a que já me submeti, mas, em contrapartida, também a mais gratificante. No caso do «Cabeça a Prêmio» foi extenuante porque se tratou de um mergulho radical. Lembro bem do processo de escrita do livro, que aconteceu entre os meses de Junho e Julho de 2001. Foram 54 dias de concentração total, escrevendo à mão em cadernos (que é assim que escrevo todos os meus livros) antes de passar o texto para o computador. Senti que ou escrevia dessa maneira quase maníaca ou então não conseguiria fazer o livro, que fatalmente ficaria pela metade. Acredito que todo livro exige o tempo de que precisa para ser escrito. Ao escritor cabe acatar ou não.

Esse tipo de literatura, cirúrgica, será a literatura deste século?

Eu acho que a literatura passa por um momento muito particular neste século, com um predomínio de uma maneira realista de narrar e com livros que, embora com discursos variados, tentam dar conta da realidade que nos cerca.

Escrever para cinema e televisão também facilita o seu processo de escrita para os livros? O que surgiu primeiro: a literatura ou os argumentos para filmes e televisão?

Eu me considero um escritor. Exerço todas as outras actividades ligadas à escrita - jornalismo e argumentos de cinema e de televisão - com muito prazer, mas considero tudo isso actividades subsidiárias. O que me justifica no mundo é a literatura. Afinal, é a actividade à qual dedico meus melhores esforços.

Acredita que há um renascimento da literatura brasileira, depois de anos de ostracismo e a viver sempre dos mesmos nomes?

Acompanho com atenção a produção literária brasileira desde a década de 1970. O que posso dizer é que nunca houve uma pluralidade de vozes como agora, e com discursos tão variados, que, no fim, de alguma maneira, dão notícia do país em que vivemos. E há ainda alguns aspectos inéditos bem interessantes. Um deles é o grande número de mulheres que publica neste momento. Nunca na história da literatura brasileira houve tantas mulheres escrevendo e publicando.

O que está a ler neste momento e um livro que o marcou nos últimos tempos?

Por coincidência, leio com grande paixão neste momento um maravilhoso escritor português, José Cardoso Pires. Sempre tive vontade de ler «O Delfim» e isso nunca acontecia. No ano passado, finalmente, consegui me encontrar com este romance soberbo e com a prosa deslumbrante do Cardoso Pires. Tanto que aproveitei minha passagem recente por Portugal para comprar todos os livros que não tinha dele. É com isso que tenho me deleitado nestes tempos. ]

Leia a íntegra da entrevista

terça-feira

[poetas e poesia]


Do blog de Saramago

[morreu Mario Benedetti em Montevideo e o planeta tornou-se pequeno para albergar a emoção das pessoas. De súbito os livros abriram-se e começaram a expandir-se em versos, versos de despedida, versos de militância, versos de amor, as constantes da vida de Benedetti, junto à sua pátria, aos seus amigos, ao futebol e alguns boliches de trago largo e noites mais largas ainda.]

José Saramago

domingo

[kind of blue na íntegra]

[pesquisei na internet e achei um site bem bacana, onde se pode ouvir o disco inteiro na íntegra. Testei e todos os links estão funcionando. Quem quiser ouvir, basta apertar uma tecla. Boa viagem!]

Ouça o disco todo.

sábado

[o mundo é para ficar acordado]

[acordei tarde, resultado de minha experiência religiosa de ontem. Precisei ir à farmácia e, na minha frente, uma jovem mãe com uma criança num carrinho de bebê conversava com o atendente. A menina estava acordada, olhando em todas as direções, vendo à sua frente embalagens coloridas de perfumes, as pernas dos adultos. A mãe notou que eu olhava para a criança e disse: "ela não quer dormir, saí com ela no carrinho para ver se ela dorme". Pobre mãe, não sabe que o mundo é para acordar e não para dormir. Longe do tédio de seus brinquedos em casa (sempre os mesmos) e dos prazeres do sexo (já não mama mais no peito) ela descobre o mundo e não quer perder nada: os cães e gatos nas ruas, os carros barulhentos, as outras crianças, as vozes à sua volta, o cheiro do pão quentinho saindo do forno na padaria. Por isso ela não dorme, ela já descobriu o mundo e não quer perder o espetáculo.]

[encontro com deus]

Jimmy Cobb: discípulo leva a palavra de Deus aonde for necessário. No fim de semana pregou em São Paulo com suas baquetas.

[algumas pessoas são abduzidas por alienígenas e recebem implantes de chips no cérebro, outras viram Elvis Presley num posto de gasolina a caminho de Memphis. Devo confessar que neste fim de semana senti a presença de Deus. Reunido com uma plateia de crentes fervorosos, senti a presença Dele nos primeiros acordes de So What, quando o quinteto liderado pelo baterista Jimmy Cobb iniciou o culto. Estava na minha frente, a pouco mais de dez metros de distância, o único remanescente do grupo de Miles Davis que, há 50 anos, entrou num estúdio para gravar Kind of Blue, o disco de jazz mais vendido do planeta (5 mil cópias a cada semana).


O grupo fez duas sessões em São Paulo, no Bridgestone Music Festival. E eu estive nas duas: quinta e sexta-feira. Digo que senti a presença de Deus, porque na verdade já o tinha visto pessoalmente quando esteve no Brasil, alguns anos antes de sua pretensa morte, nos anos 1990, quando tocou composições de seu último disco, Tutu. Este semana senti os fluído imanados por sua presença extra-corpórea. Não foi necessário acender charutos (a lei estadual agora não permite fumar em locais fechados, mesmo que consagrados a encontros religiosos como os do Bridgestone Festival) nem me banhar em sete ervas de Benin. Bastou os primeiros sopros no trompete de Wallace Roney para que a conexão direta fosse realizada. Na sexta-feira, segundo dia do show, na mesa ao meu lado um rapaz simpático, que devia ter menos de 30 anos, deu um salto na cadeira. Estava possuído. Pouco antes do show começar, ele se apresentou e, quando eu disse que havia visto o show também no dia anterior, quase me abraçou. Ele perguntou: "Você chorou?" Acho que o decepcionei quando disse não. Ao seu lado, uma amiga brincou: "mas ele vai chorar!"


Sempre me surpreendo com a reação dos jovens que descobrem as coisas boas da vida, mesmo sem ter a experiência necessária para tanto. O rapaz estava ali para ouvir uma música composta e gravada há exatos 50 anos, quando eu tinha 3 anos e seus pais provavelmente ainda não haviam nascido. Tentei parecer durão, daqueles que não se emocionam fácil, incapazes de verter uma lágrima mesmo nas situações mais difíceis. Raciocinei que ele precisava ter ao lado uma figura que transmitisse o equilíbrio necessário caso ele precisasse de ajuda.


Quem conhece e gosta de jazz e já ouviu Miles Davis sabe que eu não estou exagerando. Não sou crítico de música e seria incapaz de escrever de forma distanciada sobre ele e seu trabalho. O que me interessa é entrar em sintonia com sua música. Mesmo que você não conheça Miles Davis, sem saber já ouviu sua influência no trabalho de outros músicos. Nos discos do Djavan e da Adriana Calcanhoto sempre tem um trompetista que o segue, dando ao instrumento uma importância que ele não teria se não estivesse sento tocado ao estilo de Miles Davis. Talvez, nas seções de gravação, o espectro de Miles se fez presente e conduziu os dedos do músico nas válvulas do instrumento, numa participação espiritual inesperada e não creditada


A banda de Jimmy Cobb, o baterista que participou da gravação original, se apresenta apenas (até onde sei) para tocar Kind Of Blue, na ordem em que as músicas aparecem no disco: So What, Freddie Freeloader, Blue in Green, All Blues e Flamenco Sketches. É uma oportunidade de recriar a obra-prima de Miles Davis para quem não estava presente naqueles anos históricos de transformação do jazz. Numa outra mesa ao lado, um rapaz que já estava embriagado (de bebida e não de música) reclamou com seu amigo: "Eu vim aqui para ouvir uns caras tocando um disco do começo ao fim, na mesma ordem?" Pai, pensei, voltando meu pensamento para esse meu Deus de Illinois, perdoai, ele não sabe o que fala. Instantaneamente, o mesmo herege reconheceu: "Acho que estou bêbado". Pois perdeu uma ótima oportunidade de se deixar levar pela música para, no final poder dizer: isso faz parte da história e eu vivi esse momento; também estive no Monte das Oliveiras, também fui açoiado, morri e renasci.


A cada solo de um dos músicos (Jimmy Cobb, na bateria; Wallace Roney, trompete; Vincent Herring e Javon Jackson, sax tenor e sax alto; Larry Willis, piano, e Buster Williams, contrabaixo) a plateia aplaudia delirantemente. Cobb, aos 80 anos, exibia um vigor invejável, como se tivesse 20 anos a menos. Na noite de sexta-feira, depois de tocar as únicas cinco músicas do show, a banda voltou para o biss e atacou Milestones. Cutuquei o rapaz ao meu lado (como estava escuro não sei se ele chorou) e disse: "ontem eles não tocaram essa música". Seus olhos brilharam e ele me olhou como se eu fosse um profeta. Senti que seu respeito por mim aumentou ainda mais. As luzes se acenderam e eu me despedi. Ele ainda estava emocionado, mas levemente alcoolizado. Acho que hoje, quando acordou, deve ter achado que nosso encontro foi fruto de sua imaginação, uma visão muito comum em experiências religiosas, uma espécie de alucinação. Talvez ele ache que isso tem o dedo Dele, Miles.]

sexta-feira

[cadê jaque?, jaque cadê?]

[jaque não rima há três dias. Por onde andará? Procurando palavras pelas ruas, como quem procura moedas de ouro abandonadas por corsários em fuga?]

quinta-feira

[a mais completa solidão]

[hesito antes de pegar o telefone e ligar para amigos que são escritores, dramaturgos, roteiristas. Temo que o toque do telefone os despertem do transe em que possam estar mergulhados e os façam perder a concentração, afugentando alguma boa idéia que estava quase se materializando no momento em que soou a trombeta. Por causa disso, acabo falando pouco com eles e, quando nos encontramos em alguma festa ou evento, tento arrancar deles tudo o que posso. Quero saber dos novos projetos em que estão envolvidos, como estão tocando a vida. Com os amigos jornalistas, acostumados a trabalhar nas condições mais caóticas possíveis, sou menos cauteloso. Sei que conseguem escrever e falar ao telefone quase simultaneamente. Escrevem com tanta rapidez que, se não soubesse que são profissionais cuidadosos, poderia dizer que são displicentes. Marçal Aquino escreve com um fundo musical de jazz, preenchendo, à mão, folhas e mais folhas de caderno. É solidão com trilha musical. Não sei explicar, mas o jazz conduz a um estado de relaxamento mental capaz de abrir portas sensoriais. É uma músical mais cerebral que coronariana.
No fundo, quando escrevemos abrimos portas ou janelas do cérebro para que pequenos seres saiam lá de dentro e conversem com o leitor, contem suas histórias, dividam suas experiências. Raramente escrevo ouvindo música, porque acabo voltando mais minha atenção para as notas musicais e notando passagens que antes não havia percebido. A música me pede exclusividade. Ela também desliga alguns circuitos que me mantém preso à realidade e permite que eu divague. Nesses momentos, pode surgir uma idéia interesante ou até estapafurdia para ser trabalhada mais tarde. Mesmo que seja abandonada por completo, ela aparece e pede para ter uma oportunidade.
Aqui eu escrevo muitas vezes em meio à agitação do trabalho, mas também me isolo em horários mais tardios. Não sei dizer em que situação produzo mais e melhor. Mas, como disse certa vez Italo Calvino, acabo adiando a escrita sob o pretexto de que preciso usar o tempo em outras tarefas do dia-a-dia. E sempre procuro tarefas para me ocupar, como uma criança mergulhada em atividades que lhe roubam o tempo para impedir que ela faça o que mais gosta: brincar. ]

terça-feira

[tesouros da velhice]

Um gomo de estante lá em casa: os livros envelhecem como seu leitor.

Quando eu era criança, fazia os trabalhos escolares na casa de um amigo que tinha a Enciclopédia Barsa e os Tesouros da Juventude, uma coleção infanto-juvenil muito popular na época, vendida de porta em porta. Hoje tenho meus tesouros da velhice, repousando em prateleiras de madeira, como garrafas de vinho que esperam a idade certa para serem degustados, a companhia adequada e o melhor estado de alma para serem lidos.

[angela castelo branco]

Encontrei o blog de Angela Castelo Branco, A Educação O Sagrado. Dele retirei este poema. Respeitei a forma como ela publicou, com as mesmas quebras e sem acentuação.

[ontem eu adorei saber da minha cegueira
disseste-me que as vezes eu nao enxergava
e te digo mais: ha dias que eu também nao escuto, nao sinto o cheiro e nao falo
nada
é engraçado, mas
tudo misturou-se
entre o dentro e o fora
estou cega de voce
e de mim.

Angela Castelo Branco]

[cara nova]

o blog ganha uma nova cara, desenhada pelo designer Robson Lopez, que chegou a esse resultado depois de vários estudos, inspirado na identidade visual da Biblioteca de Boston. Espero que vocês curtam, como eu curti ver a ideia se materializar.

[um mundo sem papel]


[essa foto do leitor eletrônico Kindle DX chamou minha atenção belo design e pelo tamanho semelhante a uma revista. Mas o que mais me impressionou mesmo foi ver uma imagem de James Joyce na tela do aparelho, projetado para substituir o livro-papel, o jornal-papel, a revista-papel, o papel enfim. Sua memória, de 3,3 Gb pode armazenar o conteúdo de 3.500 livros. Você sai de casa, pega o ônibus, o metrô e leva na pasta ou na bolsa uma verdadeira biblioteca, sem pó, sem mofo, sem traças.

O New York Times, que anda numa crise danada, já se antecipou e firmou um acordo de colaboração com a Amazon, detentora da patente do Kindle. Arthur Sulzberger, presidente da empresa que edita o jornal, discursou falando do começo de um novo tempo, da morte do papel jornal, da biblioteca inteira que poderá ser acessada na tela através de um só suporte. Há alguns anos eu duvidava de uma previsão como essa, quando começaram a ser testados os primeiros leitores eletrônicos. Hoje já não tenho tanta certeza. Quando vou à cafeteria e vejo as pessoas navegando na internet com seus laptops, cada dia menores e mais leves, começo a acreditar que o papel está realmente com os dias contados. Não digo o mesmo do livro, mas acredito que os jornais e revistas tenderão a desaparecer dentro de poucos anos para sobreviver no ciberespaço, repaginados e redefinidos totalmente. Tarefa difícil para quem hoje dirige os jornais e não consegue nem mesmo renovar e melhorar o que já está aí. Se o livro tem seu fetiche como objeto (e até fetiche intelectual), o mesmo não consigo ver nos jornais e nas revistas, que estão cada dia mais obsoletos enquanto objetos. É triste para um jornalista que só soube escrever durante toda a vida, ver o desaparecimento das páginas onde despejava o conteúdo de um dia inteiro de trabalho. Quando comecei na profissão, em um pequeno jornal de interior, antes de ir embora passava pela gráfica, perto da meia-noite, com o jornal do dia seguinte embaixo do braço. Já atuando em jornais em São Paulo, observava as rotativas rodando sem parar e os pacotes de jornais saindo dobrados na outra extremidade. Para quem já trabalhou em jornal, sabe do encantamento que papel, tinta, rotativas e caminhões apressados exercem sobre os jornalistas. Um pedaço de você sai dali para chegar no dia seguinte às mãos de alguém que você não conhece, mas que se tornará íntimo seu. Uma vez, no metrô, vi uma pessoa lendo uma reportagem minha numa revista. Qual a sensação que você sente? Responsabilidade e muita humildade.


Hoje os novos jornalistas já começaram a trabalhar na era digital e veem imediatamente o resultado de seu trabalho nos sites dos veículos, nos blogs que escrevem. O resultado é imediato. É bom para quem lê também. A notícia é mais atual, não suja as mãos. Não abordo aqui se o conteúdo é melhor ou pior. Essa é outra discussão que precisa ser enfrentada por quem lê os jornais e por quem os escreve. No Brasil, como sempre, essa discussão está muito atrasada, porque o interesses imediato das empresas é apenas econômico: como fazer um jornal mais barato, mais lucrativo e, de preferência, sem jornalistas. Os jornalistas atrapalham muito os planos dos publishers (como eles gostam de ser chamados), para quem salsichas e newspapers são a mesma coisa. Quem está começando hoje na profissão precisa se preocupar com isso, com sua aparente inutilidade.]

segunda-feira

[malu e fuska]

Anna Karina e Jean-Luc Godard durante as filmagens de Pierrot le Fou (O Demônio das Onze Horas). O blog da Malu tem uma hora a mais.

[mais dois passageiros em nossa Viagem Imóvel. Ficarão por aqui girando em círculos, presos em algumas armadilhas que tentarei armar pelo caminho. Malu e Fuska chegaram hoje. Ela eu já estava esperando faz tempo, já havia deixado a porta aberta. Mas ele é uma surpresa, pois ainda não conhecia seu blog esportivo. Fuska é um jovem gaúcho, da cidade de Taquari, e diz que "gosta de estar em contato com o mundo" e de "dar e ouvir opiniões de todo tipo". Ele é gremista até em baixo do Rio Guaíba. Malu, que eu desconfio que é paulista, tem os olhos puxados e é dona do blog O Demônio do Meio Dia. Claro que ela viu o filme do Godard e adora Chico Buarque.]

[a peste humana]

Camus: peste metafórica. Se ele fosse paulista, teria que apagar o cigarro.


[nesses tempos de gripe suína não há como deixar de refletir sobre tempos sombrios, marcados por doenças reais ou metafóricas. Momentos de pânico, de ameaça. Tempos sombrios. Hora de ler Camus. Clayton Melo escreveu no blog Ponto de Fuga um ensaio interessante sobre o livro A Peste, fazendo um paralelo com o nazismo, a peste metafórica.]

domingo

[vocês que são mães, vocês que são filhos da mãe]

[quando você tem mãe, a primeira coisa que você quer é se livrar dela, viver sozinho, ter seu espaço para dividir com a solidão, para colocar minhocas na cabeça, para tomar seus porres, para se envenenar com poemas letais ou alguma outra droga mais barata. Quando você não a tem mais, a única coisa que você quer é voltar no tempo e mamar no peito. Quando sua mãe está agora apenas na sua memória, o que você mais quer é que a imagem dela nunca se apague, que o som de sua voz não se confunda com a voz de nenhuma outra mulher. O que você mais quer é que os sonhos com ela sejam cada dia mais frequentes e que você se recorde deles ao acordar. Reencontrar todas as fotos dos álbuns de família e escanear, ampliar e restaurar cada pedacinho de papel. Colocar a foto dela, jovem, na carteira, usar os presentes que ela te deixou: o relógio, a caneta tinteiro, o livro de receitas, o caderno roubado de suas poesias da juventude, suas cartas. Você teme que um dia sua memória falhe e você tenha que recriá-la e não seja de capaz de preservar seus gestos, relembrar suas melhores frases, vê-la nos seus mais lindos vestidos. Nesse dia é melhor que você não esteja mais aqui.]

sexta-feira

[bater à máquina]

[curioso. Acho que o computador nos tornou mais preguiçosos para escrever. É tão fácil escrever no computador, é tão limpo e tão rápido que começamos a buscar pretextos para não trabalhar e adiamos os projetos. Com a máquina de escrever existia sofrimento, cansaço físico, pilhas com folhas de papel branquinhas que viravam bolinhas e entupiam os cestos ao lado da mesa. Para cada folha amassada, uma árvore chorava no Paraná, sabendo que estava próximo o dia de sua morte. Quantas árvores sacrificamos com nossas bolinhas de papel. O escritor e o jornalista eram predadores da natureza. Quantas florestas devastadas em defesa da liberdade de expressão! Na verdade, liberdade para se fazer bolinhas de papel.

O escritor e o jornalista para poderem exercer suas profissões tinham também que saber consertar sua máquina de escrever. Pelo menos os pequenos consertos possíveis durante a madrugada quando as oficinas estavam fechadas. Tinham que saber trocar a fita (e depois lavar a mão encardida). Era como um motorista que precisa saber trocar o pneu do carro senão não sai do lugar. O bloqueio do escritor, na realidade, ocorria porque ele não sabia trocar a fita da máquina, ou então não tinha fita sobressalente para trocar nos fins de semana. Por isso o texto empacava, não saía do lugar, como um carro com o pneu furado. E por isso o escritor se afundava na bebida e se intoxicava com o cigarro. Todo escritor fumava e bebia, bebia e fumava. E dava murros na máquina quando ela engripava. Para escrever é preciso sofrimento e só a máquina de escrever nos fazia sofrer na medida certa de nosso talento.]

[todos os gatos do papa]

Nas ruínas do Coliseu, em Roma: personagem papal
[joão Paulo II, muito midíatico, foi chamado de papa pop. O atual, o arquiconservador Bento XVI (em italiano seu nome fica mais simpático: Benedeto), sempre sorridente nas fotos, mostra um semblante bem carrancudo ao escrever suas enciclícas, nas quais tudo é proibido. Mas, felizmente para as letras (e também para a humanidade), isso poderá mudar. Um jornal alemão publicou uma matéria revelando que o papa está pensando em escrever um livro sobre... gatos. Isso mesmo, Benedeto gosta de gatos. E mais, permite que os gatos penetrem nos jardins do Vaticano e passeiem despreocupadamente pelo local. Os guardas suíços não permitem que outros animais (não sei quais além de gatos e cães podem existir andando livremente pelas ruas do Vaticano) furem seu rigoroso bloqueio. Mas os gatos, esses tem passe livre.


Como os tempos mudaram: na Inquisição, os felinos eram identificados como aliados de satã e muitos queimaram nas fogueiras, junto com suas donas descabeladas. Quando ele ainda era o sizudo cardeal Ratzinger (na verdade essa é ainda sua identidade secreta), dava abrigo a gatos de rua famintos, lhes servia pires com leite e curava seus ferimentos, acompanhando sua recuperação e lhes dando nomes. Fico imaginando os nomes que ele pode ter dado aos pobres gatos que procuravam o abrigo da igreja: Michelangelo (em homenagem ao artista que pintou a Capela Sistina), Giotto, Galileu (finalmente reabilitados por suas heresias), Adão (talvez o primeiro gato que ele cuidou, mas depois acabou sendo expulso por conduta imprópria - leia-se conduta sexual), Madalena (para uma gata desgarrada e sensual), Noé (para um gato que reúne sua prole e a protege da extinção), Lázaro (para um gato que chegou morto, mas acabou ressuscitando com o bom tratamento).

O então cardeal revelou pela primeira vez seu sonho literário durante os funerais de João Paulo II. Ele confidenciou a um amigo que, depois que a fumacinha branca saísse da chaminé, gostaria de voltar para a Alemanha e se dedicar ao projeto literário sobre os gatos que cuidou durante muitas décadas, principalmente no período em que foi o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, na Via Aurelia, em Roma. Mas ele foi eleito papa e suas histórias ficaram na gaveta, junto com seus terços e paramentos. Hoje, quando se dirige para suas orações vespertinas, na Gruta de Lourdes, ele cruza com seus amigos felinos e deve se entusiasmar com a possibilidade de realizar seu sonho literário. Torço fervorosamente para que ele tire suas histórias do limbo e nos presentei-e com elas em algum Natal futuro.]

quarta-feira

[...ela me ajuda a viver]

[hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como ocorria na adolescência, que me preservasse das feridas que eu poderia sofrer nos encontros com pessoas reais; em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.]
Tzvetan Todorov
A Literatura em Perigo

terça-feira

[tempestade]

[ ontem, uma ventania varreu minha rua e assoprou o pó de toda a cidade.
tempestade.]




[oficina de escritores 2]

O livro de Stephen Koch, Oficina de Escritores - um manual para a arte da ficção, é daquelas obras para serem lidas na íntegra e folheadas em momentos de necessidade, em itens específicos que podem ser úteis em um momento de dúvida ou de desespero. Acho que a Bíblia também é assim, não? (rs). É um livro destinado principalmente a escritores iniciantes, com informações e dicas importantes sobre a escrita literária. O autor formatou o livro baseado em sua experiência em classe de aula na universidade. E se apóia em exemplos de escritores consagrados para aconselhar os novatos.
As principais dúvidas que afligem quem pretende escrever textos literários são abordadas e, o mais importante, os conselhos são sempre encorajadores.

[ É preciso sentar-se e escrever. Nem sequer importa, de fato, se você está com vontade de escrever. Como diz Tom Wolfe: "às vezes, se as coisas não vão bem, forço-me a escrever uma página em meia hora. E percebo que isso é possível. Descubro que aquilo que escrevo quando me obrigo a fazê-lo costuma ser tão bom quanto o que escrevo quando me sinto inspirado. Trata-se principalmente de se forçar a escrever. Há um ensaio maravilhoso que Sinclair Lewis escreveu a respeito de como escrever. Ele disse que a maioria dos escritores não entende que o processo realmente começa quando eles se sentam."]


O livro aborda os seguintes tópicos:
A Vida de escritor
Como dar forma à história
Como dar vida às personagens
Como inventar seu estilo
A história do eu
Trabalhar e retrabalhar

Para Koch, escrever é trabalhar duro em cima de um tema, avançar na escrita sem se importar com as dificuldades que surjam; nunca interromper o trabalho e, ao final, retrabalhar e retrabalhar o texto por meio de muitas releituras e revisões.

[A maioria dos escritores começa na incerteza, com uma pequena coisa chamada "germe" ou "semente" da história. Essa "semente", segundo E. L. Doctorow, pode ser qualquer coisa. "Pode ser uma voz, uma imagem; pode ser um momento de profundo desespero pessoal. Por exemplo, em Ragtime, estava tão desesperado para escrever algo que comecei a escrever sobre a parede, porque estava olhando para a parede domeu escritório em New Rochelle. Nós escritores, costumamos ter dias assim. Em seguida, escrevi sobre a casa onde estava aquela parede. Como a casa tinha sido construída em 1906, evoquei essa época e imaginei como era então a Broadview Avenue: os bondes percorriam a avenida ao pé da colina, as pessoas vestiam roupas brancas no verão para enfrentar o calor. Teddy Roosevelt era presidente. Uma coisa levou a outra, e foi assim que o livro começou; o desespero produziu essas poucas imagens."]

Enfim, antes de qualquer curso mais profundo sobre o assunto, a leitura desse livro pode ser bastante útil, até para saber se é isso mesmo que queremos fazer. Drummond dizia: só escreva se não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar, completava. O Museu da Língua Portuguesa costuma fazer workshops gratuitos com escritores, O SESC regularmente leva escritores para para falar sobre sua atividade. São boas oportunidades pra quem quer começar a escrever.

segunda-feira

[oficina de escritores]

[uma resposta que a Miriam deu para um post publicado ontem me deu a idéia de escrever sobre o tema "oficina de criação literária". Ela disse que estava pensando em fazer uma oficina com esse objetivo, iniciativa que eu apoio com entusiasmo. Mas, antes de se matricular em qualquer curso nesse sentido, acredito que esse trabalho pode ser precedido pela leitura de dois ótimos livros publicados recentemente e que estão disponíveis nas livrarias por preços bem acessíveis: Oficina de Escritores - um manual para a arte da ficção, de Stephen Koch (Editora Martins Fontes) e Para Ler como Escritor, de Francine Prose (Zahar). Antes de qualquer investimento com um curso especializado em escrita criativa, que pode ser caro (dependendo do local ou de quem ministra o curso), acredito que a leitura desses dois livros pode ser o passo inicial para ações posteriores.

O livro de Stephen Koch é muito estimulante para quem deseja escrever. E, acima de tudo, é encorajador. Ele próprio foi professor de escrita criativa e é um bom romancista e um grande conselheiro para quem quer se iniciar na carreira literária, mas ainda tem dúvidas.

Amanha vou falar mais sobre esses livros.]

domingo

[alegria do polaco]

Na época de Alcântara Machado: vida operária na São Paulo italiana.

Meu amigo Raul Drewinick, que escreve livros infanto-juvenis, deve estar radiante com o sucedido neste sábado frio. Um dia, conversando na redação onde trabalhávamos, ele me disse que sua obra literária preferida era um conto de Alcântara Machado intitulado "Corinthians 2, Palestra 1". É uma história, escrita nos anos 20, que está no livro "Brás, Bexiga e Barra Funda". O livro todo é delicioso. Quem gosta de ler histórias ambientadas na cidade de São Paulo, no meio operário e dos imigrantes italianos, não sabe o que está perdendo.


sábado

[uma jovem turca nos acompanha]

Ponte sobre o Estreito de Bósforo: ligação entre Ocidente e Oriente.

[nesta noite de sábado friorenta paulistana uma nova seguidora acompanha o blog: a jovem turca Sedef Fulda Daren. Não sei como ela chegou aqui, acho que nem ela sabe. Talvez ela entenda português ou use o tradutor do google como eu fiz na página dela. Pelo que entendi do perfil dela em turco (mal) traduzido pelo programa, ela tem tudo para gostar de Santa Clarice Lispector. A Viagem Imóvel faz a ponta entre Oriente e Ocidente, como a Turquia, terra do prêmio Nobel de Literatura Orhan Pamuk, que um dia quero conhecer.
Atravessando a ponte do Estreito de Bósforo, depois de muito andar, chegamos à cidade de Rubim, em Minas Gerais, de onde nos acompanha o Kawan, de 16 anos, que nunca imaginou que apenas uma ponte o separaria de Sedef.]

["professores, deixem alencar em paz"]

Lira Neto: Alencar não é purgante! Foto de Lailson Santos/Divulgação

O jornalista e escritor cearense Lira Neto é autor de uma biografia sobre José de Alencar premiada com o Jabuti de 2007. Numa interessante entrevista ao jornal O Povo, de Fortaleza, ele fala desse trabalho e critica os professores de literatura por obrigarem os jovens a ler alguns clássicos sem receber nenhum preparo para isso:


[Querem que pobres meninos e meninas indefesos leiam textos do século XIX sem nenhum trabalho prévio. Depois não entendem porque os alunos não gostam de ler mais nada para o resto da vida. Ora, a literatura de Alencar - assim como a de Machado e a de outros clássicos literários - é ministrada aos jovens como uma espécie de purgante, um remédio contra lombrigas. Professores de língua portuguesa, façam-nos o grande favor: deixem Alencar em paz! ]


sexta-feira

[malagueta, perus e bacanaço]

João Antônio em seu ambiente: na mão direita o taco, na esquerda o puxa-saco, usado para sustentar o taco nas bolas mais distantes.

[o livro de estreia de João Antônio, publicado em 1963, traz oito contos e uma novela e é ambientado na zona urbana de São Paulo, tendo como personagens homens da periferia, desempregados, biscateiros, jogadores de sinuca. Malagueta, Perus e Bacanaço é a novela que fecha o livro com chave de ouro. É a história de três malandros (que dão nome ao livro) que se conhecem num salão de sinuca e decidem se unir para ganhar dinheiro com trapaças, jogos arranjados, marmeladas. Estão sempre em busca de locais novos onde possam tirar dinheiro dos otários, como eles dizem. A história foi filmada em 1977 por Maurice Capovilla, com Gianfrancesco Guarnieri no papel de um dos jogadores.
João Antônio sacudiu os padrões literários da época com seu estilo seco, texto sem nenhuma gordura, ambientado nas rodas de malandragem, com seu linguajar característico. João Antônio traçou um retrato sem retoques dos desvalidos de São Paulo. Esse jogo de cintura também foi usado em seu trabalho como repórter. Eu ainda estava no início de minha carreira quando o li, seguido depois por José Louzeiro e Octávio Ribeiro, o Pena Branca, famoso por suas reportagens sobre o Esquadrão da Morte, que originaram o livro Barra Pesada. Não sei se esses livros estão no catálogo das editoras, mas valem a pena ser lidos, principalmente pelos estudantes de jornalismo. Não deixam nada a dever ao new journalism americano.]