terça-feira

Continental

Cheguei a fumar Continental sem filtro porque Sartre fumava Gauloises. Mas isso foi muito tempo depois que eu deixei de colecionar carteiras vazias de cigarro e passei a me interessar pelo que vinha dentro delas. Já era jornalista e o hábito do cigarro foi automático. O jornalismo se livrava dos últimos vícios românticos da profissão, mas minha geração ainda chegou para o final da festa, quando as garrafas ainda estavam pela metade e as mesas dos bares eram cobertas por nuvens de fumaça. A ligação com o cigarro de Sartre aconteceu porque o Continental era o que mais se aproximava do modelo fumado pelo filósofo francês. Os cigarros eram curtos, sem filtro e extremamente fortes. Um dia, vi um jornalista de rádio, mais experiente do que eu, tirando do bolso do paletó um maço semi-amarrotado de Continental , bater na unha amarelada do polegar a extremidade do cigarro que levaria à boca e acendê-lo com um palito de fósforo. Só faltou acender o palito na sola do sapato, como eu via nos filmes de faroeste. Nada mais próximo da natureza. Nada mais rude e, por isso mesmo, mais autêntico e masculino. Ele cuspia as folhas de tabaco, que não estavam tão compactadas assim e ficaram coladas na língua, e exibia os dentes amarelados, nojentos. Mudei de marca rapidamente porque não queria ficar com dentes como aqueles. Na primeira viagem à Paris, quando tinha mais de 30 anos, comprei um pacote de Gauloises e ostentava a marca nas rodas de amigos. Mas só fumava ocasionalmente, reforçando um estado de espírito daquele dia.

O sabor do cigarro francês era mais acentuado que o do brasileiro. Não tragava e deixava a fumaça dançar na boca. O sabor era adocicado.

Curiosas essas reminiscências tabagistas que trazem à tona fumaças antigas que eu acreditava já dissipadas de minha memória. Meu dentista fumava - quem não fumava naquela época atire a primeira guimba - Benson e Hedges, cigarro mentolado, que deixava na boca um resíduo de pasta de dente.

segunda-feira

Noturno

Quando eu era criança, colecionava rótulos de carteiras de cigarro. Eu e os meninos do bairro pegávamos as carteiras vazias jogadas nas ruas, descolávamos cuidadosamente as laterais e abríamos a embalagem como uma nota de dinheiro. Trocavámos as repetidas, como se fossem figurinhas, e invejávamos os que tinham as mais difíceis, de cigarros importados ou de cigarrilhas. Eu gostava da embalagem dos cigarros Noturno. Não era das marcas mais comuns, apesar de parecer um cigarro popular. Nunca conheci alguém que fumasse Noturno. Já havia visto no bolso da camisa de vários homens do bairro carteiras de Continental (com e sem filtro), Macedônia, Cônsul e Minister.

Na carteira de Noturno, uma luminária acesa, no formato de balão chinesinho, instalada num pórtico de pedra, iluminava parcialmente uma rua imaginária na noite fechada. Me lembrava uma noite intransponível, cobertapor uma neblina húmida, daquelas que eram tão frequentes na minha infância. Era possível ouvir os grilos, os sapos, o latido de cachorros invisíveis, sempre ameaçadores. Uma luz tão mortiça impedia que lhes vissem os olhos injetados de medo e ódio.

Viagem Imóvel?

E volto ao tema do título. Agora, do título do blog. Todo blog tem um título instigante, curioso, bem-humorado. Achei na internet títulos interessantes que, por sí só, justificam a existência de diversos blogs: Olhares Loiros, Os Dois Lados da Janela, Linhas Retas, Babel, Passa Nuvem Passa Estrela. A Viagem Imóvel é uma coluna de turismo de uma revista italiana de quadrinhos. Fala de viagens insólitas, aventureiras, de areia escaldante no deserto, ruínas de civilizações antigas redescobertas.

A viagem imóvel poderia ser também uma viagem em torno do próprio umbigo, o que não seria desejável, por parecer exercício narcisista e egocêntrico que não levaria a lugar algum. Acredito que os ciclos da vida são circulares, que os extremos voltam sempre a se reencontrar em algum ponto da existência e que as curvas sempre são preferíveis às retas, pois permitem passeios mais longos e lembram sempre formas femininas: seios, nádegas, barrigas levemente salientes, pontuadas por um buraquinho onde Deus deixou sua impresão digital depois de concluir o trabalho. Parece óbvio que ele empurrou aquela saliência, acima do púbis, levemente com indicador, num gesto brincalhão. A última pincelada do artista na tela ainda molhada. Como mortais, nos aproximamos de Deus quando apertamos a ponta do nariz de uma criança para que ela brinque de estrábica, com os dois olhinhos se juntando para mirar um ponto fixo e que ficará desfocado.

sexta-feira

Tudo começa pelo título

[já escrevi várias histórias a partir de um título: ou a imagem me agradava ou o som das palavras me provocava. O que faltava era escrever a história. Era como um trabalho feito por encomenda, só que quem fazia e entregava o produto era eu próprio. Talvez os anos de trabalho como jornalista tenham me ensinado a ser persistente e não desistir de uma ideia; ou a empurrar o problema com a barriga até encontrar a melhor solução. Mas, em todos os casos, nunca deixei de encarar o desafio e iniciar o trabalho na hora mais adequada. Quase nunca cumpri os prazos estipulados, mas sempre soube perceber as margens de manobra de que dispunha. Era como andar na corda bamba, equilibrando o corpo ora para a direita, ora para a esquerda, em busca de um equilíbrio que, no final da travessia, me manteria vivo e no ponto em que queria chegar.

O título de meu primeiro conto surgiu de uma imagem bem humorada. A primeira providência foi escrevê-lo num caderno no qual eu desenvolveria a história. Não precisei do caderno, pois nunca esqueci o título. Somente anos depois, sentado num vagão do metrô, comecei a escrever a história num bloco de anotações. Prossegui tempos depois em outro bloco e fui ficando com pedaços da história em cadernos diferentes, disputando as folhas limpas com as anotações que fazia para minhas reportagens para o jornal. Às vezes escrevia à noite, em casa, antes de dormir, e retomava o trabalho no dia seguinte. Demorei a encontrar o fecho, porque queria que fosse bem humorado e elegante. Só depois de concluída a primeira versão, levei tudo para o computador e comecei a martelar a pedra. Perdi a conta das versões que fiz, sempre em torno da mesma história e dos mesmos personagens. Quando coloquei o ponto final e decidi encerrar as versões e revisões haviam se passado sete anos. Era um texto curto, enxuto, de duas páginas, em word, times new roman, corpo 12. Estatisticamente, devo ter escrito, em média, dez linhas por ano. Jack London se obrigava a escrever mil palavras por dia, independentemente de seu estado de ânimo ou de embriagues. Mesmo sóbrio, eu era uma tartaruga perto do americano bêbado.]