sexta-feira

[meus tipos inesquecíveis]

[1975. Chegou à redação onde eu trabalhava, no interior de São Paulo, um jornalista do Rio de Janeiro. Caboclão gordo, dentes tortos, olhos pequenos e quase totalmente fechados, lentes grossas equilibradas no nariz largo, disfarçava a barriga com uma camisa larga por fora da calça. Suava exageradamente e tirava a toda hora do bolso um lenço para secar a fronte, ensopada e oleosa. Do outro bolso puxou uma carta de apresentação assinada por um jornalista carioca de renome. Anos depois, ao lembrarmos de sua passagem pelo jornal, nos demos conta que aquela carta amarrotada, colada com durex, de tanto ser aberta e fechada, era o que lhe abria as portas em jornais da provincia. Na verdade, pelo que lembrávamos da carta, o tal jornalista famoso não se comprometia em nada, apenas dizia que ele era uma grande figura, pau pra toda obra, para também não se comprometer em demasia.

Ele chegou na companhia do dono do jornal e foi apresentado como o novo editor-chefe, que nunca o vira na vida, mas se encantara com sua figura carismática. Para mim e mais três ou quatro colegas que ainda estavam na faculdade, era a oportunidade de conviver com alguém da velha guarda e aprender as malandragens da profissão. Ele pegava a caneta, corrigia nossos textos datilografados e descia as matérias para a gráfica. Sua letra era horripilante, mas Alberto, o chefe dos linotipistas, era calejado e conseguia decifrar os garranchos. Quando não conseguia, interpretava e escrevia sua versão, que era a que ficava gravada de forma definitiva nas linhas de chumbo cuspidas pela linotipo. E saía no jornal do dia seguinte. Depois do fechamento íamos para o bar e ele se equilbrava no tamborete ao lado do balcão e debelava suas chamas internas com cerveja e um destilado amargo intragável. E nos contava suas histórias nas trincheiras dos jornais cariocas. Nos embriagávamos com as histórias da profissão. Separado da mulher (naquela época o divórcio ainda não havia sido legalizado), ele tinha um filho adolescente que não morava com ele, batizado com o nome de um compositor clássico alemão. No meu aniversário me deu de presente um livro de contos de Guimarães Rosa, com bela dedicatória. Tenho o livro até hoje, afinal é um Guimarães Rosa.

A rotina era o trabalho diário e, depois do fechamento, a ronda dos bares. Com o tempo notamos que suas mãos tremiam, um dos sintomas do alcoolismo. Não conseguíamos acompanhá-lo na bebedeira e, inevitavelmente, éramos sempre nós que pagávamos as contas. Também lhe emprestávamos dinheiro, apesar de nossos salários serem irrisórios perto do dele.

Mas ele cativava a todos com suas histórias de boêmia e de aventuras na companhia de figuras lendárias do jornalismo. O dono do jornal estava encantado: lhe alugou uma casa e foi seu fiador, um dos colunistas lhe comprou os móveis da sala em prestações. E o dinheiro que faltava no fim do mês ele nos tungava em empréstimos nunca pagos. E o tempo foi passando.

Um dia ele não foi trabalhar. Nunca mais voltou. Desapareceu deixando para trás a casa com vários meses de aluguel atrasado, pagos pelo dono do jornal, e o carnê dos móveis também no vermelho. Anos depois, quando já havíamos saído do jornal e prosseguíamos nossas carreiras em outras redações, um amigo daquela época me telefonou. Perguntou se eu lembrava daquele jornalista e disse que o tinha visto casualmente na rua, agora em São Paulo, pedindo esmolas, sujo e com as roupas em frangalhos. Ao ser reconhecido, ele se justificou: não era nada do que meu amigo estava pensando. Ele estava apenas disfarçado para fazer uma reportagem sobre o submundo dos mendigos e moradores de rua. E lhe pediu alguns trocados.]

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