sábado

[encontro com deus]

Jimmy Cobb: discípulo leva a palavra de Deus aonde for necessário. No fim de semana pregou em São Paulo com suas baquetas.

[algumas pessoas são abduzidas por alienígenas e recebem implantes de chips no cérebro, outras viram Elvis Presley num posto de gasolina a caminho de Memphis. Devo confessar que neste fim de semana senti a presença de Deus. Reunido com uma plateia de crentes fervorosos, senti a presença Dele nos primeiros acordes de So What, quando o quinteto liderado pelo baterista Jimmy Cobb iniciou o culto. Estava na minha frente, a pouco mais de dez metros de distância, o único remanescente do grupo de Miles Davis que, há 50 anos, entrou num estúdio para gravar Kind of Blue, o disco de jazz mais vendido do planeta (5 mil cópias a cada semana).


O grupo fez duas sessões em São Paulo, no Bridgestone Music Festival. E eu estive nas duas: quinta e sexta-feira. Digo que senti a presença de Deus, porque na verdade já o tinha visto pessoalmente quando esteve no Brasil, alguns anos antes de sua pretensa morte, nos anos 1990, quando tocou composições de seu último disco, Tutu. Este semana senti os fluído imanados por sua presença extra-corpórea. Não foi necessário acender charutos (a lei estadual agora não permite fumar em locais fechados, mesmo que consagrados a encontros religiosos como os do Bridgestone Festival) nem me banhar em sete ervas de Benin. Bastou os primeiros sopros no trompete de Wallace Roney para que a conexão direta fosse realizada. Na sexta-feira, segundo dia do show, na mesa ao meu lado um rapaz simpático, que devia ter menos de 30 anos, deu um salto na cadeira. Estava possuído. Pouco antes do show começar, ele se apresentou e, quando eu disse que havia visto o show também no dia anterior, quase me abraçou. Ele perguntou: "Você chorou?" Acho que o decepcionei quando disse não. Ao seu lado, uma amiga brincou: "mas ele vai chorar!"


Sempre me surpreendo com a reação dos jovens que descobrem as coisas boas da vida, mesmo sem ter a experiência necessária para tanto. O rapaz estava ali para ouvir uma música composta e gravada há exatos 50 anos, quando eu tinha 3 anos e seus pais provavelmente ainda não haviam nascido. Tentei parecer durão, daqueles que não se emocionam fácil, incapazes de verter uma lágrima mesmo nas situações mais difíceis. Raciocinei que ele precisava ter ao lado uma figura que transmitisse o equilíbrio necessário caso ele precisasse de ajuda.


Quem conhece e gosta de jazz e já ouviu Miles Davis sabe que eu não estou exagerando. Não sou crítico de música e seria incapaz de escrever de forma distanciada sobre ele e seu trabalho. O que me interessa é entrar em sintonia com sua música. Mesmo que você não conheça Miles Davis, sem saber já ouviu sua influência no trabalho de outros músicos. Nos discos do Djavan e da Adriana Calcanhoto sempre tem um trompetista que o segue, dando ao instrumento uma importância que ele não teria se não estivesse sento tocado ao estilo de Miles Davis. Talvez, nas seções de gravação, o espectro de Miles se fez presente e conduziu os dedos do músico nas válvulas do instrumento, numa participação espiritual inesperada e não creditada


A banda de Jimmy Cobb, o baterista que participou da gravação original, se apresenta apenas (até onde sei) para tocar Kind Of Blue, na ordem em que as músicas aparecem no disco: So What, Freddie Freeloader, Blue in Green, All Blues e Flamenco Sketches. É uma oportunidade de recriar a obra-prima de Miles Davis para quem não estava presente naqueles anos históricos de transformação do jazz. Numa outra mesa ao lado, um rapaz que já estava embriagado (de bebida e não de música) reclamou com seu amigo: "Eu vim aqui para ouvir uns caras tocando um disco do começo ao fim, na mesma ordem?" Pai, pensei, voltando meu pensamento para esse meu Deus de Illinois, perdoai, ele não sabe o que fala. Instantaneamente, o mesmo herege reconheceu: "Acho que estou bêbado". Pois perdeu uma ótima oportunidade de se deixar levar pela música para, no final poder dizer: isso faz parte da história e eu vivi esse momento; também estive no Monte das Oliveiras, também fui açoiado, morri e renasci.


A cada solo de um dos músicos (Jimmy Cobb, na bateria; Wallace Roney, trompete; Vincent Herring e Javon Jackson, sax tenor e sax alto; Larry Willis, piano, e Buster Williams, contrabaixo) a plateia aplaudia delirantemente. Cobb, aos 80 anos, exibia um vigor invejável, como se tivesse 20 anos a menos. Na noite de sexta-feira, depois de tocar as únicas cinco músicas do show, a banda voltou para o biss e atacou Milestones. Cutuquei o rapaz ao meu lado (como estava escuro não sei se ele chorou) e disse: "ontem eles não tocaram essa música". Seus olhos brilharam e ele me olhou como se eu fosse um profeta. Senti que seu respeito por mim aumentou ainda mais. As luzes se acenderam e eu me despedi. Ele ainda estava emocionado, mas levemente alcoolizado. Acho que hoje, quando acordou, deve ter achado que nosso encontro foi fruto de sua imaginação, uma visão muito comum em experiências religiosas, uma espécie de alucinação. Talvez ele ache que isso tem o dedo Dele, Miles.]

4 comentários:

  1. Aqui em casa o meu pai tem alguns LP de jazz, um do Miles Davis, mas confesso que nunca ouvi. Tenho que começar a me aventurar mais nessa linha de música, porque pode ser que esteja perdendo algo bonito que merece ser ouvido.

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  2. Ouça sim Malu. O jazz tem tantas correnters, tantas linhas, que você pode achar um desses ramos que mais te agrade. O interessante do Miles Davis é que ele participou do Bep-bop, do hard-bop, do cool, do fusion. Ele abria caminhos e outros iam juntos ou vinham logo atrás. Ele "ousou" juntar o jazz com o rock, com o funk, em sua última fase. Me diz depois qual o nome do disco que seu pai tem Dele.

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  3. Ah, o nome do Lp é In a silente way.

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  4. Malu,
    Esse disco é uma maravilha. Seu pai sabe das coisas...

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