quarta-feira

coração centenário

Me considero um sujeito de sorte. Se tivesse descendentes, poderia reuni-los numa noite de outono (a melhor estação do ano), provavelmente em abril (o mês mais sonoro do ano) para dizer-lhes como sou felizardo por ter desembarcado nesse planeta e ter sido testemunha de pelo menos quatro fatos que não mais se repetirão na história da humanidade:

1)Comício das Diretas - Eu passei pelo Comício das Diretas Já,no Anhangabau, depois de sair do trabalho, no prédio dos Diários Associados. Peguei o elevador no 11º andar (ou seria o sétimo?), cumprimentei Carioca, o ascensorista paraibano que tinha por hábito aparar as unhas com um canivete, e caminhei da rua 7 de Abril até o Viaduto do Chá, passando pelo Mappin e pelo Teatro Municipal. O movimento era típico do centro à noite, quando as pessoas ainda iam ao cinema, às compras ou tomavam um último gole antes de voltar para casa. Me debrucei sobre as muretas do Viaduto do Chá, como num camarote do Teatro Municipal, e vi aquela massa humana, calculada em cerca de 1 milhão de pessoas. Não lembro se foi antes, ou depois, que assisti a um show do baterista Art Blakey, talvez o último que fez no Brasil, naquele mesmo teatro, naquela hora vazio.

Já tinha passado pelo mesmo viaduto, não sei se meses ou anos antes, também saindo do trabalho, no mesmo edifício da 7 de Abril, depois de uma passeata de estudantes. Havia uma névoa formada pelos gases das bombas que haviam sido lançadas pela polícia. Foi a primeira vez que senti cheiro de gás lacrimogêneo. Havia uma tensão no ar, mas naquele momento apenas os transeuntes caminhavam apressados pelo viaduto. Eu era um deles.

2) Cometa Halley - O cometa Halley, que passa pela Terra a cada 76 anos, me envaideceu ao voltar em 1986. Não vi sua cauda ou cabeleira pois a poluição de São Paulo cobre nossa visão do céu com um manto negro intransponível. Mas cheguei a escrever uma matéria para uma revista sobre o visitante ilustre. Talvez meu avô o tenha visto em 1910, em sua penúltima passagem pela Terra. Na roça, onde vivia, sua visão foi mais privilegiada que a minha.

3) O show Falso Brilhante - Vi o show de Elis Regina no Tuca, em 1976, e me arrependi de não ter assistido Trem Azul. Nunca mais a vi no palco. Quando ela morreu, em 1982, minha mãe me ligou para saber como eu estava. Eu ainda trabalhava no mesmo prédio dos Diários Associados. A namorada de um amigo que trabalhava comigo, reporter da rádio Globo, havia dado a notícia minutos antes. Jovem e intrépida, burlou a segurança dizendo que era da família e constatou que os rumores eram verdadeiros. Vi na televisão a multidão que parou a avenida Brigadeiro Luis Antonio no velório realizado no Teatro Bandeirantes. Fiquei muitos anos sem ouvir os LPs dela.

4 - Centenário do Corinthians - Ontem, à meia noite, ouvi uma grande queima de fogos, digna de final de campeonato. Não estava mais no prédio dos Diários Associados, que ficou para trás, mas em minha casa, assistindo a um DVD. Eram os corintianos do bairro que comemoravam o centenário de fundação do clube. A cena se repetiu em toda a cidade. Meu coração também bateu mais forte. Eu era personagem da história.

4 comentários:

  1. hahaha!!! Boa!
    Cenário novo aqui no blog! Renovar, ou morrer, vamos renovar!!!

    Abçs e saudades suas!

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  2. Meu bom memorialista, só uma correção. O Falso Brilhante foi no Teatro Bandeirantes, por isso a Elis foi velada lá. O show ficou uns 2 anos em cartaz. Sempre lotado.

    Nós também vimos Ella Fitzgerald, Nina Simone e Gal Costa, quando eram vivas... rs

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  3. Vitinha, acho que faltam dois fatos, que poderão ou não se repetir mundo afora, essenciais na vida de todo nós, os cinquentões. O operário e a mulher, sua sucessora, no Palácio do Planalto...
    Hasta la victoria!
    Besotes

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  4. Luiz,

    Estava com saudade de ler os seus textos.
    Assistir ao "Comício das Diretas" foi dos quatro fatos o que eu considero mais importante. Sem desmerecer os demais!
    Presenciar um ato que marcou a história do Brasil e contribuiu para mudar o destino de milhões de brasileiros devolvendo-lhes a cidadania é, realmente, motivo de orgulho.
    Parabéns, pelo seu "coração centenário!"

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