domingo

O domingo está terminando

18h00. Palmeiras e São Paulo empatam sem gols, Belchior continua desaparecido, mas alguém disse que ele agora mora em uma cabana no Uruguai. Mas desde quando o Uruguai teve cabanas? Quem é Belchior, pergunta um menino fadado a ser como seus pais daqui a alguns anos, um simples rapaz latino-americano. Onde é o Uruguai?, retruca outro que só conhece a Disney de país estrangeiro, onde se fala português fluentemente. Na TV a cabo, um casal de cantores, com uma filha linda de poucos meses no colo, canta uma música de Roberto Carlos em hebraico, dizem que é tema de uma novela da Globo. Rubens Barichello não ganhou a corrida, mas também não saiu nenhuma mola de seu carro e o GP terminou sem muitas emoções. Na calçada de minha rua, um grupo de mulheres conversa e uma delas aproveita para pintar as unhas dos pés da colega. No lado oposto, onde há um bar, um grupo toca violão e canta com voz embriagada na calçada. O chão está coberto por tampinhas de garrafa de cerveja e, na rua, muitas afundaram no asfalto como restos de estrelas salpicando nosso chão. A temperatura está morna, como o resto da cerveja nos copos dos cantores. Dentro do bar, o dono, um português de 70 anos, completamente sem sotaque, conversa com os frequentadores mais assíduos, que já têm o direito de abrir a geladeira e pegar a própria cerveja. Há dois meses, um maluco entrou no bar e o atacou com um machado, sem nenhum motivo. Apesar da idade, o comerciante conseguiu se desvencilhar e saiu apenas com alguns cortes rasos na cabeça. O homem foi preso mas já está solto. Todos os moradores da rua foram ao bar, até mesmo aqueles que nunca bebem, para saber se ele estava bem. Eu também ouvi a história de sua própria boca e fiz inúmeras perguntas. Ele sempre deixa eu levar a cerveja, com a promessa de devolver a garrafa depois. E eu devolvo. O domingo caminha para um fim melancólico, como de praxe. Li só um pedaço do jornal, mas não tenho a mínima vontade de ler o resto. Já está velho. A gata está dormindo e o gato desaparecido pelos telhados. Daqui a pouco ele volta faminto e com cara de assustado. Para ele nada muda na rotina domingueira. Amanhã começa tudo de novo.

sábado

Quilombolas em Osasco

Osasco, na Grande São Paulo, recebe a exposição fotográfica Quilombolas - Tradições e Cultura da Resistência, que já circulou por 14 cidades brasileiras e cinco da América Latina. Nesta versão, estão programadas 13 exposições no estado de São Paulo. O material faz parte de um livro. A exposição contém 33 fotografias em preto-e-branco.

Também serão realizadas atividades paralelas com a apresentação de grupos de Capoeira, Jongo e Maracatu. A mostra abre neste sábado (29/8) e a visitação vai até 2 de outubro. As atividades são gratuitas. Marcos Bogato participa da organização do evento.

Local:
Centro Municipal de Formação Continuada dos Profissionais de Educação
Avenida Marechal Rondon, 263 - Centro
(11) 3682-1246

sexta-feira

neblina parnasiana

São Paulo em dia de Rimini, sem a praia fria e sem Fellini.

São Paulo amanheceu nesta sexta-feira como o set de Amarcord, de Fellini, coberta por uma neblina pesada que permitia a visão de apenas alguns palmos à frente do nariz. Ao abrir as cortinas do quarto, às 6 horas da manhã, vi apenas alguns galhos das árvores do jardim furando uma nuvem densa de algodão doce. Segui os antigos conselhos de minha mãe e não me agasalhei muito. Apesar do frio curitibano, sabia que em menos de uma hora o sol surgiria forte e dissiparia o nevoeiro. Quando liguei o computador, vi a notícia de que os aviões estavam colados nas pistas dos aeroportos paulistas. Os pilotos, seguindo orientação das torres de controle, esperavam a ordem para decolar. Mas, mesmo sem essas ordens, bastava telefonar para suas mães para saber que o sol logo derreteria a serração. Na minha infância, neblina era serração e gripe era resfriado. Nos anos 60, quando eu ia para a escola chutando pedras com meu Vulcabrás de bico desbotado, o caminho era todo fechado pela neblina matinal. No intervalo do recreio, quando sol já estava forte, surgia uma bola e durante uns 30 minutos nos aquecíamos com um jogo rápido e às vezes violento no páteo. Ao som da campainha, voltávamos para a sala de aula, suados e eventualmente sangrando. Mas não era nada que motivasse preocupações maiores.

Na verdade, olhando para trás e forçando um pouco a memória, éramos quase invisiveis para os professores. Lembro do professor de português, no terceiro ano do ginásio, que lia poemas de Raimundo Corrêa, enquanto dava baforadas num cigarro espetado numa piteira preta. Não lembro se ele jogava as guimbas no chão ou se apagava o cigarro num cinzeiro. Pobre professor, hoje teria seu diploma cassado e não poderia mais lecionar em São Paulo. Perseguido só por ser parnasiano.

quarta-feira

o que é um jardim?

"O que é um jardim para um beija-flor no seu ninho?", pergunta Ricardo Blauth, autor da foto.

"Será um jardim só aquilo que descreve o dicionário?", indaga o artista plástico Ricardo Blauth, um de nossos seguidores, no blog Os Jardins da Garopaba. E ele questiona novamente: "Não será a areia da praia o jardim do mar?"
Eu tento, pacientemente, reconstruir os jardins da minha infância e atrair os pássaros que os frequentavam. Colho sementes nas ruas e lascas de galhos que coloco na água a espera que criem raízes. Lhes dou um novo endereço e uma nova oportunidade de vida, como se participassem de um programa de proteção à testemunhas e precisassem de abrigo depois de cumprirem uma missão importante. Pelo menos uma dessas plantas, que hoje oferece lindas flores roxas, já não existe mais no endereço original de onde foi capturada. Cedeu o lugar para um muro. Uma muda de bananeira, que ganhei de um amigo, se proliferou de tal forma que tive de conter seus avanços para que não ocupasse o lugar de uma ameixeira que surrupiei com menos de um palmo de altura de uma calçada do bairro e que hoje já está com quase um metro.

segunda-feira

o valor de um poema

“A rigor, o valor de um poema define-se pela sua linguagem. Como há 5 mil anos foram feitos milhões de poemas e o poeta vai repetir aqueles mesmos temas, penso que somente a linguagem pode ser o diferencial na forma de colocar estes temas. Mas não é só isso: é preciso que a linguagem se transforme no fenômeno poético! O que é isto? Esta é uma questão que gostaria mesmo de polemizar, por isso algumas frases provocativas. Ser poeta é visualizar outro estado de ser. Vejo a poesia como um ser vivo e sagrado em seu desdobramento mítico e inviolável. O conteúdo de um poema só é bom quando instala o estranhamento, o mistério, a indagação. Só é bom quando se afasta do transitório, da banalidade, da babaquice, em direção ao eterno. A arte é ainda uma catarse. Exige nosso sangue. A poesia circula nas veias do poeta, na angústia de ser poeta. O verdadeiro poeta transcende os limites da percepção rotineira. A verdadeira poesia rompe o tecido conceitual da realidade, cria uma nova tessitura poética, mais real, irreal, surreal em sua essência (....) O lugar do poema é no limiar da metáfora, embora a poesia moderna privilegie a metonímia, é a metáfora que dá emoção à poesia. Mas emoção, como dizia Ferreira Gullar, não é emocionalismo barato. O bom poema necessita de contida elaboração, mas a técnica por si só pode tornar-se inútil e estéril se não veicular a poesia (....) Tenho lido muitos poemas em meus 65 anos, no entanto, parece que quase todos dizem la stessa cosa. O mais patético, hoje, são aqueles que fazem ‘experiências’ com a palavra sem nada a ver com a poesia”.

Osmar Pisani
(1936-2007)

terça-feira

“Vim te buscar, meu amor! Vamos embora”


A dupla Bonnie & Clyde foi vista em Itapevi.

A frase, completada por um beijo, não foi dita por Humphrey Bogart a Ingrid Bergman, no filme Casablanca, numa tentativa vã de impedi-la de embarcar naquele teco-teco com um cara muito esquisito chamado Victor Laszlo. Ele não disse essas palavras mágicas e ela, mesmo querendo ficar, partiu com o esquisitão. E o velho Bogart, que dizia estar sempre três doses acima da humanidade, se contentou em voltar para seu bar na companhia do chefe de polícia, dizendo que ali nascia uma grande amizade.

O verdadeiro autor da frase foi o namorado de Paula Vezicato, uma morena bonita, de olhos grandes e vivos, por quem é fácil se apaixonar. Ele abriu a porta de sua cela e ela saiu. Mas não era uma prisão metafórica. Era uma cela da cadeia de Itapevi (SP). Os dois se abraçaram e ele disse a frase de galã. Cinco minutos antes, numa ação também cinematográfica, ele havia invadido a delegacia, armado, e rendido os poucos policiais presentes. Se ele não fosse bandido, seria herói. Bruce Willis. Num gesto ainda mais generoso, abriu todas as celas e libertou outros 17 presos. Schwarzenegger. Tudo foi rápido e sem violência. Não houve troca de tiros. Mesmo fulminante, o amor só atingiu o casal-bandido.

A polícia chegou atrasada, mas conseguiu momentos depois prender oito dos fugitivos e localizar o carro usado na fuga. Mas nem sinal da moça. Ela já estava em local seguro. Os moradores da cidade, um dos pequenos municípios da Grande São Paulo que se transformaram em cidades-dormitórios, deram entrevistas aos jornais populares e se disseram preocupados com a falta de segurança. Preocupação desnecessária porque o bandido apaixonado, como foi batizado pelos jornais, já realizou sua proeza e não voltará mais a atacar. A não ser que sua amada seja novamente presa. Mas, certamente, o casal vai ser mais cuidadoso daqui por diante e ela não se deixará mais ser abordada em um carro roubado, com a bolsa cheia de pedras de crack .

quarta-feira

Maui e Ilana

Maui é a da direita, sem óculos.

Eu acredito no Deus dos gatos. Quando tudo parece perdido para eles, eis que ocorre um milagre. A vida desses bichos está repleta de pequenos milagres. Às vezes eles ocorrem à luz do dia, à beira de uma estrada de Petrolina, por onde passam automóveis e caminhões, romeiros arrastando cruz, homens que venderam a alma ao diabo numa encruzilhada deserta. Os locais perigosos e ermos e os mais mal frequentados são sempre os mais propícios para as aparições divinas. Falo do Deus dos gatos, evidentemente. Maui é testemunha de um milagre. Se não o carro no qual viajava sua salvadora não quebraria a poucos metros de onde ela estava.

Hoje, ela dorme numa cama quente e não precisa perambular mais pelas ruas cobertas de pó, onde os poucos restos de comida encontrados são disputados por crianças esfarrapadas e sem nenhum Deus que cuide delas. A dona de Maui não sabe que não existe o acaso na vida de humanos e felinos, que eram deuses em outras eras e se comportavam como tais. Ela também não sabe que, a partir de agora, sua vida ganhará outro rumo. Com um desses pequenos e antigos deuses andando sem cerimônias por seu apartamento, ela será testemunha de pequenas transformações à sua volta: estará mais atenta a quem precisa de sua proteção, receberá cargas de energia nos momentos em que estiver triste e desanimada; dará muitas risadas com algumas perantices de sua mascote; terá alguém com quem conversar e trocar confidências; ganhará uma fonte nova de inspiração para seus escritos e uma ouvinte atenta para suas histórias. E essas histórias certamente se enriquecerão com a formação de uma nova dupla literária. A mais jovem toma leite e a mais experiente talvez já tenha descoberto que existem bebidas melhores que coca-cola.

terça-feira

Yes, we can... eat rucula


Fiquei sabendo hoje pelo blog Literatura Cotidiana, onde escreve o Marco Bogato, que o Obama quase perdeu a eleição porque come rúcula. Fui pego de surpresa e pesquisei na internet algumas referências sobre o assunto. Durante a campanha Obama comentou, num estado produtor de milho, que o preço da rúcula estava os olhos da cara (the eyes on the face). Bastou para que os mais conservadores americanos o chamassem de elitista. Um político ligado a Bush pai disse que precisou procurar o que era rúcula no dicionário. Me espanta que ele soubesse a utilidade de um dicionário, além de substituir pés quebrados de camas ou servir de suporte para o monitor de computadores.

Nos EUA, candidato que honra o nome e as calças tem de comer aqueles horrorosos e gordurentos churrascos de hamburguer, regados de cerveja aguada, quase choca. É como nossos candidatos que só mostram a força de seu caráter quando sentam num aprazível botequim e degustam uma saudável buchada de bode, com o suor escorrendo em bicas pela fronte.

Pobre Obama, homem elegante, casado com uma bela mulher (as americanas invejam seus braços longos e firmes) e pai de duas lindas filhas, que arrumam sozinhas a cama e ajudam a lavar os pratos depois do jantar. Fico imaginando o cardápio da família, que não deve ser divulgado para não assustar ainda mais os eleitores conservadores.

No Brasil, a rúcula é bem popular e pode ser encontrada em duas versões: a hidropônica (cultivada em água com nutrientes) e a tradicional, que cria raízes na terra. Eu prefiro a que brota da terra, cujo gosto é um pouco mais amargo, mas mais saboroso, principalmente com tomates, regada a azeite e limão.

domingo

[primeiro, matam nossos girassóis...]


Apenas um campo de combustível?

[o progresso, decididamente, parece ser inimigo da beleza e da poesia. Brecht alertava que, enquanto dormimos, inimigos invisíveis se aproximam e pisam nas flores de nosso jardim e avançam gradativamente em suas crueldades. Na cidade de Novo dos Parecis (MT), máquinas gigantescas estão pisando e esmagando um campo amarelo de girassóis para transformar essas flores imortalizadas por Van Gogh em óleo comestível e biodiesel.

Li a notícia no jornal Valor Econômico de quinta-feira (30/7). E, ilustrando o texto, uma foto do campo, com as flores do sol espetadas na ponta de caules firmes com seu gigantesco olho amarelo observando o fotógrafo, mas ainda não cientes do perigo que correm. Na visão moderna do pintor holandês, o quadro poderia estar representado por embalagens de óleo ou por caminhões se movimentando nas estradas, movidos pelo combustível ecológico. Lembrei dos bebês focas do Canadá, sacrificados por serem belos e frágeis.

Quando os artistas semeiam o campo, os investidores chegam com suas máquinas; quando as flores desabrocham, são ceifadas e esmagadas. Por que o belo tem que ser sacrificado? Por que a beleza tem que ser fugaz? Deixem as flores morrerem de velhice, deixem-nas perderem as pétalas, uma a uma, e cumprirem seu ciclo. Façam combustível da mamona, da soja e de outras plantas que nunca abriram olhos tão grandes e deslumbrados para o mundo. E nunca inspiraram poetas e artistas. Poupem essas fontes de beleza e deixem que sejam lembradas pela maciez de suas pétalas, pelo design de suas formas e por suas cores quentes. Deixem que elas alegrem os campos e nos façam esquecer da aridez das cidades. Deixem que elas simplemente existam com a única finalidade de nos encantarem.]