quinta-feira

[bola sete na caçapa do meio!]

Sinuca: física, geometria e segredos revelados.

[pra valer mesmo e não ficar ficar a impressão que você acertou por acaso, a jogada tem que ser cantada, ou seja, dita em voz alta. Vou matar a bola sete na caçapa do meio! Se ela ricochetear nas tabelas laterais da mesa, deslizar pelo pano verde e cair em outro buraco, não vale. É cagada. E como tal deve ser denunciada pelo próprio autor, que se protege da galhofa alheia. Na sinuca não tem paradinha para enganar o goleiro. A trajetória da bola é traçada previamente e, dependendo de seu talento, a bola entra. Não existe sorte, apenas física e geometria.

Como o boxe, a sinuca também tem seu mundo subterrâneo e não florece nas mesas de salões elegantes, onde rapazes e moças bebem refrigerante e se divertem fazendo as bolas colidirem aleatóriamente contra as outras apenas para verem o efeito dispersivo e colorido, quase explosão de átomos do acaso, big-bang cósmico. Nesses salões bem iluminados e elegantes as bolas do jogo mais parecem vacas de uma manada desgarrada e sem comando. O jogo florece mesmo é nas mesas mais escondidas, de salões discretos onde os jogadores são pacientes e insones. As mesas são de boa qualidade, muitas oriundas de outros salões que já fecharam as portas, com cobertura verde tão reluzente como a grama de bons estádios, cuidada com antecedência para final de campeonato.

Alguns dos meus melhores amigos, ao longo dos anos, destinaram algumas horas de seu tempo para um jogo descompromissado, sem hora para acabar, regado com muita cerveja e conversa, nem sempre fiada. O diálogo em torno da mesa, nos momentos que antecedem a finalização de uma jogada fácil, pode ser banal, sobre amenidades, mulheres, desafetos do ambiente de trabalho, futebol. Mas, quando envolve o cálculo preciso, o silêncio necessário à concentração, o gesto calculado da mão que segura o taco, pode marcar o início de uma conversa mais séria, o compartilhamento de um segredo que estava à espera do momento solene da revelação. Ali está prestes a ocorrer um milagre. Não é à toa que a mesa é iluminada por halos de luz, como aqueles que distinguem pecadores de santos. Quando a bola branca esmurra com potência a de outra cor, que cai com um grito de dor na caçapa escolhida, o jogador que estava com o corpo inclinado sobre a mesa se apruma novamente, deixa o taco repousar ao lado da perna, e pode então dar um veredito certeiro, um conselho apropriado, uma palavra de conforto.

Só podemos falar de nós quando estamos em locais que permitem solenidade ao momento. Não se conversa em igreja, local de medidação e silêncio; não se conversa em transporte público, pois perdemos a intimidade na presença de tantas testemunhas. No salão de sinuca, só existe a mesa, envolta numa certa penumbra, coberta por fumaça de tabaco e oito bolas de marfim como testemunhas mudas e cegas.

Tive um amigo, parceiro em duas ou três noites, que me confidenciava sua felicidade por ter encontrado a mulher de sua vida. Vinha de um casamento fracassado, mas agora estava com a mulher que talvez devesse ter encontrado antes da primeira. Ele se rejuvenescia ao contar alguns detalhes de seu placar amoroso (não tantos assim, pois existia uma discrição masculina que não permitia a abertura de todas as portas). Fazia planos. Deu de pintar. Um ano depois foi esnucado por um enfarte. A bola branca, aquela que não pode nunca cair na caçapa, se desviou da rota e caiu no buraco, sem voltar para a mesa. Para ele o jogo havia acabado antes de matar a bola sete, negra como a noite lá fora.]

quarta-feira

[ana cristina cesar]

Ana Cristina, na contracapa de Inéditos e Dispersos

Parafraseando Mário de Andrade, é preciso escrever um post sobre Ana Cristina Cesar. Ao percorrer os blogs literários femininos-feministas, tenho notado que outra Santa olha por essas jovens poetas, além de Santa Clarice em cujo altar já acendi uma vela esta semana, pedindo por todas elas. Ainda vou citar alguns poemas que li esta semana, influenciados por essa poeta carioca morta tão precocemente. Tenho na minha frente uma edição de Inéditos e Dispersos, com poemas e textos que foram publicados postumamente.


[ESTOU ATRÁS


do despojamento mais inteiro

da simplicidade mais erma

da palavra mais recém-nascida

do inteiro mais despojado

do ermo mais simples

do nascimento a mais da palavra]


Na contracapa há uma foto dela, cabelinho curto, óculos redondo e um sorriso doce de quem espera a goiaba ficar madura.

[o eu outro]

O Enigma de um Dia, de Giorgio De Chirico, 1914. Acervo MAC

[você já quis ser outra pessoa? Não apenas ter outro corpo por razões estéticas, ser mais alto, mais magro, enfim, ser mais bonito. Falo em ter o corpo e a alma de outra pessoa. Ser o outro, o desconhecido, aquele com quem cruzamos na rua e do qual não tínhamos, até aquele momento, conhecimento da existência. Às vezes me vejo caminhando por lugares onde nunca estive, ou que reconheço por fotos de revistas, guiando um rebanho de cabras num terreno pedregoso, onde cresce um capim muito ralo e amarelo, quase seco, que alimenta os animais apenas o suficiente para mantê-los vivos e produzindo leite. Animais que há gerações se acostumaram com o pouco que conseguem tirar dessas pedras, mas que retribuem com leite quente e espumante. Eles parecem resignados àquelas paragens inóspitas. Quando o sol está muito forte, sem árvores que produzam sombra, descansam na entrada de cavernas úmidas, na verdade buracos escavados em encostas onde o solo é menos pedregoso.

Já me vi, em sonho, falando fluentemente uma língua estrangeira que, no meu eu presente, mal consigo balbuciar ou acompanho aos trambolhões, envergonhado por estar cometendo erros grosseiros, fruto mais da timidez do que da ignorância. Já me vi também imbuído de uma coragem até então desconhecida, que me levava a percorrer becos escuros e manter o passo firme mesmo com ruídos suspeitos ao redor. Ou com o silêncio absoluto, que paralisa a respiração.

Numa das primeiras vezes em que pensei estar na pele de outro, fazia uma viagem noturna de ônibus e olhava pela janela através do breu que se adensava a medida que os faróis dos carros desapareciam. Em pontos mais distantes, transpondo as cercas de arame farpado, que impedem os animais de criação de cruzar a pista, vi lampejos pálidos, como velas inúteis na escuridão. Imaginei quem estaria protegido e aquecido sob aquela luz e o invejei por ter, naquele momento, a consciência plena de que estava vivo. O ônibus, às escuras, com o ronco do motor mantendo um zumbido constante, se deslocando veloz na noite profunda, era um mundo paralelo que só passaria a existir de fato no momento em que parasse em algum posto de abastecimento. Aí sim, no meio daquela pequena aglomeração humana, num local afastado (como conseguiram chegar ali e ali permanecer?), passaríamos a existir.]
Quero escrever um pouco mais amanhã ainda sobre esse tópico...

terça-feira

"Não li e não gostei"

Chico tira de letra as ofensas dos beques que jogam pelo lado direito do campo. A foto é do blog da Tatiana Machado, que encarou uma dividida com o jogador do Politheama, num texto delicioso.

[li esse comentário que está no título em um blog pretensamente literário e cultural a respeito do novo livro de Chico Buarque, Leite Derramado. Me assustei com a avalanche de críticas ofensivas e preconceituosas derramada contra o escritor e compositor pela esmagadora maioria de leitores do blog, que nem vou nominar. O chamaram de mau escritor, de mau compositor, de artista decadente, de aproveitador. Tudo porque ele tem um passado e um presente político coerente com toda a sua trajetória como artista. Confesso que fiquei assustado. E decepcionado. Assustado com a sede de sangue, que eu acreditava não existir mais nesses setores mais conservadores. Decepcionado porque ainda procuro acreditar que as pessoas evoluem, amadurecem, reveem comportamentos, enterram preconceitos. Mas, como dizia o bom e velho Chico num dos momentos mais difíceis vividos por esse país, "você não gosta de mim, mas sua filha gosta".]

segunda-feira

[natureza viva]

Natureza Morta, de Daniel Fernandes

[domingo foi dia de feira, comunico com um dia de atraso. Nas barracas, frutas, verduras e legumes enfileirados formavam um painel colorido e brilhante. Inspiração para telas de natureza morta. Para mim, é natureza viva, pulsante. Um menino passa com o pai pela barraca de ovos (brancos e avermelhados) e o pai ensina: "os pássaros são ovíparos porque botam ovos". Não sei como a aula começou, nem como prosseguiu, pois eu continuei andando para fazer minhas compras. Quando eu era criança, minha mãe criava patos e galinhas. Gemada era com ovo de pata, mais forte; o gosto acentuado se perdia na mistura com o açúcar, a canela e o leite. Mais que os antibióticos que tomava diariamente, acho que foram as gemadas que me salvaram. Pelo menos era o que minha mãe dizia. E eu sempre acreditei nela.

Na feira de domingo comprei tomates do tipo italiano, grandes, vermelhos, doces. Seguindo a lei de Lavoisier, serão transformados em suculento molho para o macarrão e a carne dos próximos dias, em substituição aos molhos enlatados e ecologicamente incorretos. Nas barracas, uma aula de genética a céu aberto. Os pimentões que na minha infância eram apenas verdes e vermelhos, agora são amarelos e roxos, ou misturados com essas cores, parecendo um dálmata do reino vegetal. Aprendi em algum domingo longínquo que a revolução genética começa sempre nas barracas dos feirantes japoneses. Lá estão legumes e verduras alterados pelas mãos humanas: ganham cores, formatos, dimensões e sabores diferentes, como se tivessem sido trazidos de terras exóticas. Mas são todas cultivadas aqui, no cinturão verde que circunda São Paulo, aberto pelas enxadas dos imigrantes orientais e europeus.

A feira também é parte da aula sobre a geografia humana brasileira. Ao lado das barracas dos descendentes dos imigrantes estrangeiros que alimentaram suas famílias vendendo produtos na feira, estão as dos migrantes nordestinos, nos ensinando o sabor de algumas frutas que antes só eles conheciam: siriguela, sapoti, pequi (com seus espinhos internos e traiçoeiros, mas de gosto refinado para a culinária do Norte).

Tempos atrás, um governante burocrata que nunca deve ter colocado os pés numa feira criou uma lei para calar os feirantes, impedindo-os de apregoar seus produtos. Fui testemunha de uma verdadeira rebelião civil, armada apenas com o oxigênio dos pulmões, com os feirantes e seus filhos bradando a qualidade de seus produtos. A feira virou uma verdadeira torre de babel. Mesmo com todos falando a mesma língua, os sotaques se misturavam e nenhuma voz se distinguia, ao contrário, as vozes se misturavam num tempero tropical para qualquer prato doce ou salgado. Os feirantes ganharam no grito e o governante, envergonhado, rasgou o texto de sua lei que, se tivesse sido impressa em papel jornal, serviria para embrulhar pencas de bananas. Nada se perde, tudo se transforma.]

sexta-feira

[despertar paulistano]

[saio de casa para o trabalho muito cedo pela manhã. Os ponteiros do relógio, que regem nossos passos, se movem e, num ritmo que parece ensaiado mas na verdade é trôpego, outros personagens surgem: uma porta de garagem abre-se automaticamente e um carro sai sem que o rosto de seu condutor possa ser visto; um gato cruza a rua deserta sem pressa, como quem acaba de voltar de uma festa e ainda está muito feliz para sentir sono; japoneses idosos chegam de várias direções e se reúnem na praça do bairro, vestidos de branco, para a ginástica coletiva.

Em poucos minutos, no metrô, outros rostos ainda sonolentos fogem da luz no túnel subterrâneo que corta a cidade nas direções dos pontos cardeais. Os mais jovens são os que aparentam mais cansaço e fecham os olhos embalados pelo sacolejar dos vagões. No ouvido, os fones de aparelhos de mp3 parecem transmitir cantigas de ninar. Alguns leem, mas os livros sempre estão nas primeiras páginas. Será que vencerão o sono e conseguirão avançar até o final? Os assentos reservados aos idosos, grávidas ou pessoas com deficiência física estão ocupados pelos demais passageiros. Nesse horário, quem tem lugar garantido naqueles bancos ainda não saiu de casa.

Na estação onde desço, os camelôs já estão a postos com suas barracas armadas. Uma mulher com fresco sotaque nordestino, rosto moreno e liso como um pessego que acabou de ser colhido, ainda húmido pelo orvalho, vende café e bolo de milho que ela mesma faz. Ela sorri, entrega o bolo, recebe o pagamento, e já está pronta para novo cliente. Na cidade de onde ela veio, o sol já está nascendo e as ondas batem na areia, convidando para um passeio de barco. Ela está longe do mar, numa ilha cercada de pessoas apressadas que pararam para comer de suas mãos. Elas são limpas e macias e entregam cada fatia de bolo como o mar de sua terra, que lança conchas na areia.]

quinta-feira

[você tem de gostar do meu presente]

Interpretação tipográfica de um conto de Italo Calvino feita pelo designer David Damico
[presentear com livros é uma tarefa agradável pois implica em ir a uma livraria e procurar a obra certa para a pessoa certa, como uma roupa que possui a modelagem certa para cada corpo. Mas a padronização dos corpos e a dos cérebros são completamente diferentes. O livro que é bom para um, não é bom para outro. Aquele livro que me abriu tantas portas, pode ser uma tábua áspera para alguém que não trilhou as mesmas estradas que meus pés. Mas devo ser sincero, pois na maioria das vezes em que escolho a obra, penso mais em mim que no outro. Penso na boa ação que faço ao prescrever o remédio para alguém que julgo dele necessitar. Até porque esse medicamento curou o meu mal. Penso também que se alguém tem de mudar, esse alguém é o presenteado e não o presente. O livro é o correto, mas ainda vai demorar algum tempo para o outro perceber isso. Até lá ele vai vagar por aí e vai sofrer até o momento certo para encontrar o volume, alinhado na estante ou soterrado por uma pilha de outros livros. Talvez a capa ou o título chamem a atenção. Ou a cor da lombada. Mas o certo é que esse dia vai chegar.
Aos jovens jornalistas que ainda estão na faculdade ou já se formaram eu dou Fama e Anonimato, de Gay Talese. Sei que alguns leem e percebem existência de um mundo novo, longe das páginas das revistas de celebridades. Eles percebem que há vida por trás de cada palavra usada para contar uma história. Sei também que outros não leem ou inventam tantas desculpas para não ler que me preocupo com seu destino. Antevejo as dificuldades que encontrarão na profissão, mas me tranquiliza saber que eles ainda têm o remédio ao alcance da mão.

Para os que não são jornalistas, mas estão descobrindo o prazer de ler, eu peço para a vendedora embrulhar Italo Calvino para presente. Os Amores Difíceis, o Barão nas Árvores, Marcovaldo e as Estações, por exemplo. Mais do que mostrar que cada palavra tem sua vida e sua história que merece ser contada, Calvino consegue enfileirá-las de uma forma muito original, inusitada, muitas vezes surreal. Já li praticamente todos os seus livros e, quando estiver mais velho, vou voltar a eles como se volta aos clássicos, ou, de uma forma que Calvino gostaria de saber, como se volta às histórias em quadrinho da infância. Os desenhos são sempre os mesmos, mas parecem diferentes a cada leitura.

O Castelo dos Destinos Cruzados, que li num local tranquilo, num período de descanso do trabalho, foi o último que devorei. A história é surreal, num clima de fábula antiga, marca de boa parte de sua obra.]

quarta-feira

[o olhar de Lina Faria]

Ruina, foto de Lina Faria: encaixe de quebra-cabeça.


[conheci hoje o blog de Lina Faria (Não Lugar), minha nova seguidora, que vive em Curitiba. Ela é fotógrafa e gosta de documentar a relação das pessoas com os espaços em geral, tendo como compromisso a beleza e a harmonia. "Mesmo na realidade de uma favela, resgatar a dignidade através do belo é o que me interessa. Gosto também, e muito, de design e arquitetura. Da social à contemporânea, o gosto pelo ocupar me interessa", diz ela. Tomei emprestada uma foto do blog dela que é muito bonita (ela e a foto) e está aberta a inúmeras interpretações. Eu a vejo como um quebra-cabeças faltando uma peça.]

Dança contemporânea das cidades estranguladas

Lourdes Hernandez é uma chefe mexicana de cujas mãos nascem preciosidades da cozinha de seu país. Casada com o artista plástico e poeta Felipe Ehrenberg (ex-adido cultural do México no Brasil), ela envia por e-mail aos amigos avisos de seus rituais gastronômicos, que organiza periodicamente em sua casa. De quebra, ela nos brinda com algumas reflexões. Coloco abaixo sua deliciosa crônica, que recebi hoje, com irresistível sotaque mexicano, sobre o trânsito de São Paulo.
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Imagem da Virgem de Guadalupe, entronizada na casa de Lourdes. A foto é do blog do Marcelo Katsuki, onde ele fala dos banquetes que a chefe organiza em sua casa.
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Lourdes Hernandez
No México, durante vários anos, a gente tomava café da manhã ouvindo a Radio Educación ou, para ser mais precisa, escutando Emilio Ebergenyi. Era muito gostoso. Dava para ficar sabendo das notícias do dia além ouvir alguém comentar, sempre de um modo inesperado, corajoso e muito divertido. Ele não acreditava na comunicação vertical e sim na horizontal, de tu a tu, entre iguais.

Já morando aqui, descobrimos que o sinal de rádio não pegava em nossa casa e passei a ouvir notícias só no carro. Um dia descobrimos Rádio USP, antes da Rádio Cultura –que tem mais o jeitão do Felipe – e nossa vida foi encontrando o tom – Jobim – que precisava. Todo mundo nos recomendava a Eldorado; certo, mas o sinal ainda hoje não ajuda. E ele é um atroz ditador.

Até o dia que encontrei por acaso a Radio Sulamérica, que me ajuda a enfrentar o trânsito de São Paulo. Não vou contar como fui ficando adicta [viciada], não é importante. Mas, na semana passada, grande surpresa: os ouvintes ganharam uma caixa de voz para deixar mensagens. Ainda não está claro para mim como os motoristas se comunicam sem infringir as leis que impedem o uso do celular no carro. Imagino que eles, já livres de um engarrafamento daqueles, encostam num lugar permitido e avisam ao resto dos mortais que não devemos pegar aquela rota suicida.

Ô, fico muito agradecida!!! Mas voltando a essa nova ferramenta da rádio do trânsito, estou realmente tocada. Fulanito, Zutanito e Menganito ligam, se apresentam, “sou Zutanito Silva, acabei de fazer o trajeto tal e tal e fiz em só 8 minutos, mas tem ali na rua tal e tal uma caçamba que pode dar problemas, muito obrigado, vocês fazem um trabalho demais!” E eu só posso agradecer a Deus que Zutanito Silva haja me avisado do perigo duma caçamba traiçoeira que, de um momento a outro, decida sair andando pela via perigosamente. Mas o que me tocou mesmo foi o recado de Zé dos Patines, que depois de apresentar-se com linda voz e falar de alguma via no fim do mundo com dor de cabeça e pesadelos, falou com vontade de não desligar nunca mais essa ponte de comunicação: “olha, gente, obrigado por nos ajudar, vocês fazem minha vida possível” O resto do mundo desapareceu para mim. O mais desolado dos ouvintes acabava de se despir para habitar na frente de todos nós sua bela solidão.

Agora escuto, vivo alerta aos recados de voz da rádio, pensando se ele vai aparecer um dia de novo, com sua voz envelhecida no trânsito e nova na ingenuidade de ouvir-se a ela mesma na magia de poder falar para muitos, tantos, algo importante e do interesse comum e amargo como amargo é saber que andamos em círculo e sem saída, essa dança contemporânea da morte que é o trânsito das cidades estranguladas.

terça-feira

Chegou Jaquelyne, protegida de Santa Clarice

Chegou uma nova seguidora do blog (que feriado fértil!!). Ela é a Jaquelyne, de Petrolina, Pernambuco, terra de Lenine, o músico, não o comuna. Ela é uma das protegidas de Santa Clarice. Mais sobre ela, por ela mesma: "Uma nefelibata que aspira um mundo melhor, um mundo que a Poesia fornece. Estudante de Jornalismo, sonhadora que deseja ser escritora, amante dos escritos de Cecília Meireles, de filmes como Ágata e a Tempestade, das músicas de Julieta Venegas... Uma menina ainda mora em mim, desejo que ela se torne eterna, dela não me desfazerei. Uma pessoa que gosta de sorrir, escrever, falar, andar, que não suporta a tristeza porque tem alma álacre, que não pode conviver com a falta de entusiasmo porque senão nada produz. Que não pode viver sem amor, porque nada seria. Meus sonhos abarcam o mundo, em tentativas de transformações!".
Estão apresentados.

Leite derramado

Não precisa de legenda.

Comecei a ler ontem o novo livro do Chico. Estou gostando bastante. Avancei pouco porque era tarde da noite. Mas acho que termino até o fim de semana. Fala sobre um homem no leito de um hospital e suas memórias. Esse tema me atrai muito. No site da editora dá para ler o primeiro capítulo.

Seguido por uma idish mama

O blog possui agora cinco seguidores. Os dois novos, surgiram nesse feriado prolongado e enforcado: Jorge Fernandes e Miriam Halpern. Vi os blogs que o Jorge acompanha, inclusive um muito interessante sobre literatura, mas não havia links para o perfil dele. A Miriam, que fez um comentário sobre o texto Futebol, tem um blog (Mãe, Mulheres e Afins) muito legal com um foco bem familiar. Li alguns textos e lembrei de histórias parecidas de minha família, de histórias de superação de gente comum cuja vida não sai nos jornais.

Fico imaginando Miriam se descabelando para que tudo dê certo num jantar de família e depois colocando suas impressões serenas e filosóficas no computador, já com as mãos lavadas. E gostei muito do seu olhar de idish mama (será que é assim que se escreve Miriam?). Só quem tem mãe judia ou cristã de origem italiana ou portuguesa sabe do que estou falando. Essas mulheres são únicas: souberam nos educar com a dose certa de terror, chantagem e excesso de calorias e de carinho.

Um dia, minha mãe me telefonou para dizer que tinha me visto na estação Sé do Metrô e havia gritado o meu nome. Eu estava do outro lado da linha e não a vi nem a ouvi, em meio a todo aquele burburinho. Nem sabia que ela andava de metrô. Como gostaria de tê-la visto, subido as escadas rolantes e abraçá-la do outro lado, no meio da multidão apressada. Nem Fellini teria escrito uma cena como essa.

Às vezes ela me ligava no trabalho e pedia desculpas caso estivesse estava atrapalhando. Era para falar do jantar, de alguma roupa minha que havia passado. No dia em que Elis Regina morreu ela me ligou porque sabia que eu estaria triste e queria me consolar. Ficava me esperando chegar. Um dia tarde da noite ela estava sentada na sala vendo a reprise de um jogo de futebol sem nenhuma importância. Por que me esperou, eu disse que chegaria tarde, eu perguntei. Ela disse que não estava me esperando, estava assistindo ao jogo, ora bolas.

segunda-feira

Futebol

Dia seguinte de jogo decisivo. Torcedores acordam leves, com sorriso besta no rosto, dispostos a exibir sua felicidade pelas ruas. Quem não tem a camisa vencedora para exibir, apenas sorri, dá bom dia, ajuda velhinha a atravessar a rua, passa a mão na cabeça do cachorro do vizinho, diminui o passo para que o gato não se assuste e atravesse a rua imprudentemente. Ainda lembra uma frase do locutor, escuta o eco do último gol e sente novamente os pelos do braço se arrepiarem. Como é bom estar vivo, pensa. Passa a prestar atenção às coisas mais simples ao seu redor: ao capim que cresce num canteiro descuidade, no voo rasante de um passarinho em busca de comida, no moleque com o jornal em baixo do braço para levar para o pai. Para um momento na banca e observa os jornais, compara as manchetes, ri com os títulos mais provocativos. Cruza com um correligionário com a camisa do time e toma a decisão: vou comprar uma esta semana. Justo ele que sempre foi tímido e sempre se vestiu de forma sóbria para permanecer invisível na multidão. Agora está disposto a chamar a atenção, a se exibir. Principalmente para as crianças, que precisam ser influenciadas pelos mais sábios. E ele se autoescala entre os sábios, os conselheiros, os veteranos, aqueles que têm tantas histórias para contar, que pode servir de exemplo à nova geração. Lembra dos ídolos do passado, mesmos os do time adversário. Ele não é injusto com os grandes deuses da bola e sabe reconhecer aqueles que se destacaram nesse monte Olímpo coberto por grama esmeralda. Um dia, lembra, cruzou num restaurante com Ademir da Guia. Mesmo que ele não fizesse parte do passado glorioso de seu time, ficou emocionado e quase cumprimentou o veterano, apelidado de Divino. Mais do que a rivalidade, o que o impediu foi a timidez. Nunca mais viu o Divino de perto. Quando era criança, ficava com o radinho de pilhas colado ao ouvido acompanhando cada lance. Quando via o jogo pela TV preto-e-branco, mal distinguia os jogadores borrados pela péssima sintonia proporcionada pela antena mal posicionada. Nessa época jogava no gol e chegou a ser escalado para uma partida do time do bairro, com direito a camisa emprestada, chuteira, joelheira e campo com traves e redes (furadas). Foi o primeiro e último jogo. Seu time ganhou, mas sua atuação foi desastrosa. Nunca mais pisou em um campo e, até hoje, tem uma simpatia muito grande pelos goal-keepers, os guarda-metas, guarda-valas, como são chamados pelos comentaristas. E torce para que eles mantenham a dignidade e saiam sempre vencedores. Desde que sejam do seu time, claro.

domingo

Vergonha de ser escritor 2

A jornalista e pesquisadora Cristine Costa publicou em 2005 Pena de Aluguel - Escritores Jornalistas no Brasil, 1904-2004 (Companhia das Letras), no qual apresentava um questionário a 32 jornalistas escritores cujo mote principal era: trabalhar na imprensa ajuda ou atrapalha alguém que pretende ser escritor? Entre os ouvidos es~tavam Arnaldo Bloch, Bernardo de Carvalho, Cadão Volpato, José Castelo, Rosa Amanda Strausz, Heloisa Seixas, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Marcelo Coelho, entre outros talentosos jornalistas escritores. Boa leitura, texto gostoso de ler e muito elucidativo para conhecermos a carreira de autores contemporâneos importantes na literatura e no jornalismo brasileiros.

Fernando Molica respondeu: "No Brasil, a prática consagrou que escritor é quem escreve livro, mesmo que o livro seja uma grande reportagem. Sempre aceitei esta divisão, talvez porque eu tenha entrado no jornalismo em um momento em que a profissionalização da categoria tenha se radicalizado. Não havia mais espaço para uma etapa mais romântica, em que jornalismo e literatura podiam, muitas vezes, se confundir".

Quando converso com jovens jornalistas ou estudantes que ainda não terminaram o curso mas já trabalham em redações (sendo explorados, essa é a verdade, sem nenhum apoio de seus editores, largados à própria sorte), enfatizo sempre a importância do texto e da leitura. Tenho cada vez mais recomendado livros dos jornalistas escritores, como Gay Talese (Fama e Anonimato), Truman Capote (A Sangue Frio, que virou filme), Tom Wolfe (Décadas Púrpuras). Quero despertar neles o interesse pelo texto e o texto como território inexpugnável de sua profissão. O texto bem escrito que pode driblar as amarras do jornalismo e se impor na edição final do jornal. Desde que tenha alma, mas que também tenha musculatura. O texto franzino, raquítico não vai vencer.

Mas essa é outra discussão. O que me interessa agora é pensar como jornalismo e literatura podem conviver, sem serem tratados como atividades conflitantes ou menores (no caso do jornalismo).

sábado

Vergonha de ser escritor

José Roberto de Alencar, cego de um olho, mas que tudo via. Grande repórter, que partiu cedo demais.

Sou de uma geração em que os jornalistas tinham vergonha em apresentar um novo cartão de visitas: escritor. Claro que o cartão é metafórico, como as frases futebolísticas do Lula. Pois (tenho usado muito essa muleta jornalística, preciso me policiar mais) os jornalistas dos anos 70 tinham vergonha de dizer que eram escritores. Nossos chefes de reportagem e editores separavam as duas atividades nitidamente: jornalista é jornalista e escritor é escritor. Não se misturam, não se autofecundam como algumas espécies de flores. Eramos de uma geração perfeccionista, que tinha de dar certo. Só pensávamos e praticávamos jornalismo. Durante o dia apanhavámos da polícia nas passeatas de metalúrgicos e de estudantes e, à noite, enchíamos a cara trocando idéias nas mesas dos botequins próximos das redações, como o Mosca Frita (era o nome fantasia que inventamos) e o Miranda, perto da Folha de S. Paulo, por onde passaram bons jornalistas (pelos bares, não necessariamente pelo jornal). Nós que estavámos começando na profissão, mostravámos nossas matérias uns para os outros e fazíamos comentários e críticas. E aproveitavámos, também, a convivência com jornalistas da geração anterior à nossa, como Ricardo Kotscho e José Roberto de Alencar (repórter brilhante e já falecido) e outros não tão famosos, mas que sabiam lidar com as pretinhas, como chamávamos as teclas das máquinas de escrever que usávamos.

Éramos jovens jornalistas, estávamos aprendendo a ser jornalistas e tínhamos bons professores nas redações. Queríamos escrever de forma cada vez mais clara e desenvolver leads (o primeiro parágrafo da reportagem, que funciona como resumo de todo o texto) bem construídos, criativos, bem humorados. O lead bem feito e criativo era o cartão de visitas do jornalista, motivo de orgulho.

No Jornal da Tarde não existia lead. O trabalho era mais autoral, inspirado do New Journalism americano. O repórter se envolvia na apuração, se colocava na matéria, emitia opiniões. Era um texto mais próximo do literário, por isso mesmo mais soltos, sem as amarras dos manuais de cada redação. Alguns faziam isso muito bem: Marcos Faerman (já falecido), Valdir Sanches, que era repórter policial, Percival de Souza, também repórter policial. E muitos outros. Mais que jornalistas, eram escritores, mas não se julgavam escritores. Para eles, a literatura era coisa mais séria, como se o que eles faziam não tivesse o mesmo nível de seriedade. Depois eles publicaram livros, depois viraram escritores, oficialmente. Para os editores daquela época, só era escritor quem publicava livros. E nosa geração não tinha tempo para publicar livros. O jornalismo nos absorvia full time (outra expressão da época).

A grande questão que nos atormenta ainda hoje é onde termina o trabalho do jornalista e começa o do escritor. Garcia Marquez é escritor, mas seu passado como jornalista também influencia seu texto. Lembro de uma reportagem que ele fez nos anos 80 sobre a fuga de cubanos em balsas improvisadas para Miami. O lead começava mais ou menos assim: "No dia X, o remédio X estava faltando nas farmácias de Cuba". Era um remédio para enjôo. Todos os que iriam se aventurar no mar (valei-me São Dorival Caymmi) haviam comprado pastilhas contra enjôo antes de partir. E a partir daí seguia a reportagem. Até hoje me arrepio ao ler esse texto. Começaram a ser publicados, se não engano no ano passado, os trabalhos de Gabo como jornalista, que incluem reportagens, entrevistas, críticas de cinema.

sexta-feira

Cartas de amor

Minhas mais belas cartas de amor nunca foram enviadas. Ainda as guardo e reconheço com alguma dificuldade a mesma letra que as escreveu há mais de 30 anos. Eram cartas corajosas, reveladoras, poéticas, mas que nunca chegaram ao seu destino. Prefiro pensar que foram enviadas e retornaram sem serem abertas pelo destinatário, carimbadas pelo Correio. Prefiro pensar que o carteiro não encontrou o endereço, ou que decidiu me poupar e não entregou a correspondência. Se isso fosse verdadeiro, eu o agradeceria imensamente. Outra alternativa, que eu nunca quis, é que essas cartas tivessem sido lidas e ignoradas ou que me afastassem para sempre de quem eu queria mais perto de mim. Quase todas dessas mulheres nunca souberam que eu as amei. Mas houve uma excessão: X recebeu a carta e me respondeu de forma muito carinhosa, lamentando não sentir o mesmo por mim. E conversou comigo. Nós trabalhávamos juntos, sentávamos um ao lado do outro, e ela nunca se afastou de mim. Ao contrário, se tornou mais presente para cuidar da ferida até ver a cicatriz.

quinta-feira

Protógenes, o gato

Protógenes, de tocaia no jardim. Ele não sabe que eu estou de olho nele.

Quem tem ou já teve felinos como hospedes eventuais ou permanentes vai saber do que estou falando e entenderá perfeitamente a personalidade de Protógenes, o gato que apareceu lá em casa e, depois de mostrar sua verdadeira face, foi batizado com o nome do delegado grego.

Pois Protógenes é daqueles gatos que insistem em vasculhar sua intimidade: não pode ver a porta do guarda- roupas aberta que já entra sem ser convidado e começa a fuçar, como se estivesse a procura de alguma coisa escondida. Revira tudo. Também notei que ele vive se esgueirando pela casa, rastejando como soldado em campo de batalha minado. Acho que ele fica ouvindo minhas conversas atrás das portas. Quando o flagro à espreita, ele se faz de desentendido e sai de fininho, como quem foi surpreendido praticando uma peraltice. Ele sabe que eu sei que gatos costumam ser peraltas e, talvez por isso, faça pose de "não é comigo".

Mas tem algo no comportamento dele que me intriga. Nunca está à vista e se esconde nos locais mais inusitados. Já o vi atrás de uma planta como se estivesse camuflado, imóvel para não ser percebido. Fiquei olhando de canto de olho, sem ele notar, para saber se estava respirando. Mas, fora esse comportamento sherlockiano, o gato parece um felino normal: come bastante e dorme sobre as almofadas da poltrona. Ou melhor, fiquei em dúvida se é ele mesmo que dorme ou se colocou um boneco de pelúcia para assumir seu lugar, enquanto fuça, livremente, pela casa. Acho melhor fechar as portas com chave. Nunca se sabe.

quarta-feira

Forja de campeões


Mailer: pugilista das letras americanas, segundo a Economist

Gosto de engraxar os sapatos com os engraxates da praça da Sé. Talvez o momento em que sentamos na cadeira do barbeiro e na do engraxate seja para nós, homens, o pouco de que dispomos para refletir sobre nós ou para conhecer melhor aquele profissional que está sempre segurando uma tesoura ou um pano encardido e lustroso de graxa preta e marrom.

Descobri que meu barbeiro estava com câncer quando a fase pior da doença havia passado. Ele é um menino comparado a mim. Tem pouco mais de 30 anos e corta meu cabelo e faz minha barba desde que ele tinha 17. Eu notara que ele estava mais magro, com o cabelo mais ralo, mas não perdia a disposição para o trabalho. Quando conversamos sobre o assunto, ele me disse que o pior já havia passado e que começava a se restabelecer. Fiquei sabendo de seu sofrimento quando ele já não sofria. Hoje ele está bem e conversamos com mais frequência que no passado, quando ele era apenas o homem que segurava uma tesoura ao meu lado.

Outro dia, na cadeira de um engraxate com quem eu ainda não havia engraxado os sapatos, ele me falou expontaneamente de sua vida de imigrante, das dificuldades de formar e manter a família com o fruto do seu trabalho. O que mais me interessou foi a paixão com que falava do filho adolescente que estava aprendendo a lutar boxe numa academia para jovens na Mooca, onde começa a Zona Leste de São Paulo. Me disse que o menino está se desenvolvendo muito bem e queria continuar a carreira profissionalmente. Me convidou para vê-lo lutar num dia especial em que vários alunos se exibiriam. Não fui, apesar de ter ficado tentado. Há muito tempo tenho vontade de visitar esses locais onde jovens pobres lutam boxe, conhecidos como forja de campeões. Esse nome exerce um fascínio sobre mim e resume o que acontece naquele espaço cercado por cordas e onde muitos sonhos desabam.

O boxe é um esporte curioso. Tenho uma amiga, muito delicada, que é fanática e acompanha lutas pela TV. A primeira imagem que fica é a de que o esporte é violento, presenciado por torcedores sádicos. Também tinha essa impressão. Nunca gostei de lutas violentas, quando o risco enfrentado por um dos pugilistas é evidente. Não gosto de ver um homem ser humilhado, jogado ao chão como um animal abatido. Mas não deixo de torcer, mesmo contra toda a lógica do esporte, para o lutador mais franzino, mais desajeitado, com o calção mais feio e rosto mais desesperado. Estou sempre ao lado dos sofredores, dos humilhados, dos que têm fome por justiça. Muito raramente eles ganham, mas pelo menos tentaram.

Sempre que a TV mostra lutas antigas de Muhammad Ali ou de Ray Sugar Leonard eu vejo. Alí, mais que dois homens se golpeando, vejo um balé, uma troca de golpes que pareceria uma troca de carinhos se os punhos não acertassem. Vi um documentário sobre a histórica luta de Ali contra George Foreman, em 1974, no Zaire, que ele venceu contra todas as expectativas. Antes de ver o filme eu havia lido A Luta, de Norman Mailer, que acompanhou os bastidores e escreveu um livro-reportagem sobre o combate. Ali chegou ao Zaire derrotado e saiu de lá coroado. Ele debochou do oponente, mais forte que ele, desde que chegou à África. Dizia que venceria Foreman porque era mais jovem e mais bonito. No ringue, ele pedia para Foreman bater. Foreman batia enfurecido, disposto a acabar com o arrogante. Quanto mais batia, mais Ali ria. Parecia inabalável. Ali apanhava, mas também fugia graças a seu jogo de pernas. Foreman bateu tanto que cansou. Então Ali começou a lutar. Foreman perdeu para si próprio, para o seu talento, para a sua força física. Ali ganhou, como ele disse, porque era bonito.

Ernest Hemingway também adorava bebidas e emoções fortes. Sem o jogo de pernas de Ali, foi a nocaute no meio do combate.

Lembro dessa história

"Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitura comum e interessada, e não saberei que nesta encarnação fui eu que os escrevi."

Clarice Lispector

terça-feira

Luz

Minha mãe lavava roupa cantando músicas de Caubi Peixoto e Angela Maria. Aos domingos, meu pai colocava na vitrola os discos em 78 rotações de Francisco Alves e Vicente Celestino. Eu lia Reinações de Narizinho sentado no canto mais ensolarado do quintal. Meus olhos ficavam ensopados de luz e, quando eu não suportava mais tanta claridade, entrava em casa e me sentia confortavelmente cego por alguns segundos. No livro, Emilia piscava o olho.

Milestones

Miles, fotografado por Tom Palumbo. O trabalho de Palumbo é destacado no excelente blog de Rhys Transfer

Quando me perguntam se acredito em Deus, ergo os olhos para o céu e respondo, convicto: Sim, acredito em Miles Davis.

domingo

Aleluia e Páscoa

Nunca malhei Judas nem corri atrás de balão, as duas atividades mais pirotécnicas que os meninos de minha idade executavam com entusiasmo e sadismo (no caso da malhação a Judas) no bairro onde morava. O máximo que fazia era ajudar um baloeiro bem mais velho e segurar uma das pontas dos imensos balões que ele preparava para soltar nas festas de São João. Balão caixa, balão mixirica, balão charuto. Cada menino segurava numa ponta e aguardava, pacientemente, o balão se encher de ar quente e subir praticamente sozinho na noite escura, piscando como um disco voador de subúrbio. O máximo de chocolate que eu conhecia e apreciava eram os cigarrinhos da Pan que imitavam os verdadeiros. O menino negro na embalagem já deve ter uns 90 anos de idade. Os dias da Paixão eram dias tristes, sem brincadeiras na rua, de silêncio quase absoluto em casa. Os meninos se sentiam culpados pela morte de Jesus e por isso eram tão violentos quando desforravam no boneco de pano sua raiva à traição cometida por Judas. Como o traidor apanhava em nossa rua! Acabava desmembrado e degolado, com queimaduras de primeiro grau. Minha mãe tinha medo que eu me machucasse e não me deixava participar daquela catarse infantil coletiva. Nunca dei nem um croque no Judas.


Judas e seus justiçadores numa foto dos anos 60. Nosso bando era parecido, mas menos numeroso. Essa foto é da cidade de Silveiras.

sexta-feira

Uma pro santo, na sexta-feira idem

Lembrei de São João del Rei e suas igrejas barrocas. Procissões se arrastando como cobra pelo chão (obrigado Gil) e o som dos campanários ecoando pela cidade até sumirem por completo. Se Deus existe, ele vive em São João del Rei, dormindo em alguma pensão de estudante e penando para não cair nas ruas calçadas com pedra. Bebendo pinga dourada em algum botequim e apagando o cigarro em cinzeiros de pedra sabão esculpidos pelas mãos tortas de Aleijadinho. Deus não joga bituca no chão. Ele é politicamente correto.

quinta-feira

Bela

- Foda-se.

O palavrão saiu de sua boca sem o ponto de exclamação. Não soou como ofensa; não continha nenhuma obscenidade e não chocou quem o ouviu. Também não ostentou um tipo de exibicionismo que, na boca de algumas mulheres, é sinônimo de vulgaridade. Seus olhinhos claros brilhavam, fitando o interlocutor no fundo da alma, e seus lábios rosados abriam-se ligeiramente, quase num sussurro. Ela poderia estar no púlpito de uma igreja e o palavrão passaria despercebido nas notas do canto gregoriano. Os santos não se ofenderiam, o padre lhe estenderia a hóstia.

Ela tinha o dom de paralisar quem estivesse ao alcance de seu olhar. Não era apenas por sua beleza. Difícil explicar, porque ela era uma mulher normal, nem magra nem gorda, de mãos macias e dedos longos, finalizados por unhas curtas e rosadas. Mas era decidida: opinava como uma mulher madura, apesar de ter apenas 25 anos. Era firme em seus argumentos, mas doce ao enunciá-los. Por isso, os palavrões que compunham suas frases não chocavam. Faziam parte de um contexto que, bem analisado, perdia completamente seu sentido original. Sumiam no meio da frase sem deixar vazios; como se fossem uma vírgula, uma reticência.

Como exemplo, ouçamos sua frase inteira:

– Não quero me preocupar tanto assim com esse cara. Foda-se.

O sujeito certamente ouviu a frase até a palavra cara porque estava tão ocupado em seguir os movimentos de seus lábios, pingando palavras como suco de fruta mordida, que nem tropeçou no palavrão. Ou então o traduziu automaticamente por “isso não importa”.

Impossível desviar os olhos de seu rosto, não tentar contar as sardas que salpicam cada maçã de sua face, pouco abaixo dos olhos e antes de chegar ao nariz, altivo como o de um atleta que sabe de antemão que a prova já está ganha. A seu favor, claro.

E, prosseguindo a conversa, convicta de que o mundo está parado naquele breve instante, ela emoldura a frase seguinte com um caralho, firme, mas que ecoa quase como um lamento; é o reconhecimento de um momento de fraqueza, de rara desvantagem.

Quem a ouve se apieda. Ela, analisa o ouvinte, é frágil e dá sinais de que necessita e busca proteção. Também nesse momento, o palavrão foi a senha para despertar no outro sentimentos quase paternais, se não pairasse no ar aquele perfume que ela libertou dos cabelos depois de passar os dedos pelos fios longos e castanhos, puxando-os levemente para trás.

“Porra, como ela é bonita”, pensa o homem, que, imediatamente, estremece e não consegue esconder o rubor que lhe escala o pescoço e aquece o rosto, dando conta de que deixou um palavrão se materializar entre os dois. E se envergonha de ter pensamentos tão chulos na presença dela.

quarta-feira

Santa Clarice rogai por elas

Ora, não sou linda. Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se irradia algo que talvez se possa chamar de beleza (Clarice, irradiada e modesta)

Onze entre dez blogueiras amam Clarice Lispector. E todas destacam uma frase dela. E são sempre frases muito boas. Estou lendo agora um volume de crônicas ("A Descoberta do Mundo")que ela publicou no Jornal do Brasil nos anos 60. Se eu andasse com um lápis no bolso marcaria inúmeras frases em cada página que viro.

Tem uma em particular que eu gosto muito e que resume o que sinto com essa coisa de escrever. Ela disse: "Escrever é uma maldição". Eu sinto na carne essa maldição que me obriga, a cada dia, a cada noite, a cada tarde, embrulhar um pedaço de mim num pedaço de papel. Se eu fosse cristão diria que é a cruz que carrego, mas, ao contrário do Galileu, não posso salvar o mundo. Clarice também não podia salvar o mundo e essa impotência a perseguia. Persegue a todos que precisam escrever para provar que estão vivos. Provar para si próprios que existem.

Minha Santa Clarice Lispector, a santa mais desejável em carne e osso e a mais necessária em espírito, olhai por essas meninas blogueiras que rogam por ti. Elas escrevem bem, são sonhadoras, são frágeis, precisam de sua proteção. Ilumine suas palavras e reforce o carmin do baton nos lábios delas.

Toureiros não fumam charutos

Hemingway numa tourada em San Fermin: olé

Coloquei o texto do post anterior porque gostei do título. Foi tirado de um blog espanhol e a forma como a notícia foi tratada, irônica e claramente a favor do touro, deixou os leitores até confusos sobre a real intenção do autor.

Em português, o texto é mais ou menos assim:

"Eram 5 horas da tarde em ponto. A praça de touros de Vistalegre, uma moderna arena coberta, uma novidade para prolongar as temporadas taurinas, filtro contra o sol implacável dos verões e dos frios polares dos janeiros de mudança climática, havia pendurado a placa de ingressos esgotados. Também haviam pendurado o aviso de é proibido fumar pois, uma vez coberto, o ambiente era considerado fechado.

Saiu o primeiro touro e os aficionados tiraram instintivamente do bolso, onde antes guardavam seus charutos cubanos, enormes bolsas de sementes de girassol. A praça se transformou logo num burburinho nervoso de cascas, enquanto na arena o touro sangrava nas feridas abertas pelas picadas e bandeirinhas. Alguém não se conteve e acendeu um charuto imenso.

Quando o toureiro matou o animal, inexplicavelmente a polícia prendeu o homem do charuto e não o toureiro.

Los toreros no fuman puros


Eran las cinco en punto de la tarde. La plaza de Vistalegre, un moderno coso cubierto, novedoso invento para alargar las temporadas taurinas, filtro contra el sol implacable de los veranos y de los fríos polares de los eneros del cambio climático, había colgado el cartel de no hay billetes. También había colgado el cartel de prohibido fumar, pues, una vez cubierto, se consideraba un local cerrado.

Salió el primer toro, y los buenos aficionados sacaron instintivamente del bolsillo, donde antes guardaban sus puros habanos, unas enormes bolsas de pipas de girasol. La plaza fue pronto un murmullo nervioso de crujido de cáscaras, mientras en la arena el toro se desangraba por las heridas abiertas a puyazos y banderillas. Alguien no pudo contenerse y encendió un puro inmenso.

Cuando el torero dio muerte al animal, inexplicablemente la policía se llevó detenido al del puro y no al torero.

terça-feira

A louca da Pavuna 2

Uma foto antiga da Estação Ferroviária da Pavuna. A Louca da Pavuna passava por aqui, andava pela linha férrea, se equilibrando nos trilhos, descalça, alheia ao perigo. O maquinista já a conhecia e reduzia a velocidade do trem antes de chegar à Estação. E acionava o apito para avisar que estava chegando. A louca achava que ele a saudava. Mas era o sinal para que alguém a tirasse da linha. E ela saía, mansa, rindo, agitando o vestido.

Ménage à trois

Ganhei de presente todos os contos da Virginia Woolf lançados pela CosacNaify. Capa linda. Abri, cheirei as páginas e senti aquele perfume de tinta e verniz de livro novo. Antes de começar a ler eu cheiro o livro. Está na pilha, ao lado da cama, na fila para ser lido, ao lado de outros que já cheirei. Sei que não vou resistir e lerei alguns contos durante a semana, mesmo sem ter terminado os outros livros que estou lendo: "As Mulheres de Meu Pai", do José Eduardo Agualusa, e um volume de crônicas que a Clarice Lispector publicou no JB na década de 60. Será um ménage à trois clássico: duas mulheres e um homem.

A louca da Pavuna

Praça da Pavuna, frequentada pela louca.
Essa imagem tem alguma coisa de surrealista.

O dia amanheceu sem chuva e o outono se impôs em sua face mais marqueteira, trazendo aquela luz típica de olhos azuis. Deixei meu óculos de sol em casa para poder enxergar a cidade com suas cores outonais sem nenhuma interferência.

Enquanto caminhava para o trabalho, muito cedo pela manhã, me veio uma idéia à cabeça: escrever uma história com o título "A Louca da Pavuna". Não sei porque, talvez alguma referência rápida que eu tenha lido sobre esse bairro carioca em alguma crônica da Clarice Lispector. Ou o samba de Almirante. Ou porque o nome Pavuna lembra mistério, periferia carioca de antigamente, Machado de Assis, João do Rio. Uma história com uma certa nostalgia da vida suburbana do Rio que eu conheci na infância na casa de meus avós, mas que eu apenas sei que existiu ao ver as fotos no álbum de fotografia de minha mãe.

Já tenho o título. Falta a história.

segunda-feira

Minhas seguidoras

Tenho duas seguidoras: Iaiá e Ingrid. Descobri hoje. Ingrid só segue a mim. Iaiá, que tem uma tatuagem no ombro direito (será que é o ombro dela?), segue mais dois. Iaiá gosta de poesia e segue um poeta. Comecei a seguir poetas aos 13, 14 anos, quando descobri Carlos Drummond de Andrade. Pegava um ônibus e ia para a biblioteca pública em outro bairro. Acho que o primeiro livro que pedi para a bibliotecária e levei para uma mesa longe dos demais consulentes (que palavra horrível) foi "Alguma Poesia". Se abria um mundo novo para mim, longe dos versos rimados e metrificados de Raimundo Corrêa que o professor de português insistia em nos fazer decorar. Eu li o livro inteiro. Pedi também Mário de Andrade, Oswald de Andrade e mergulhei fundo, de cabeça.

Ainda hoje, poesia para mim é remédio para a alma, é prece. É contato com o desconhecido. É sair do corpo. Chega a ser metafísico e o máximo grau em transcendência que consegui chegar. Mas se eu me aprofundasse mais, como deveria, acho que levitaria.

Se consegui descobrir algo sobre Iaiá, nada encontrei sobre Ingrid. Não sei o que mais elas podem ter em comum além da letra i do nome. Não sei se são amigas, se estudam juntas, se um dia se encontrarão e lamentarão não terem se conhecido antes que se tornassem minhas seguidoras. Elas podem até suspirar: "por que ele não começou o blog antes, assim teríamos nos conhecido mais cedo". Se eu soubesse que dependeria de mim apresentar as duas, certamente teria sido menos preguiçoso.

Caem as folhas, os prédios

gosto do outono. Nada a ver com as folhas secas que caem das árvores. Não vejo a estação como metáfora para o renascimento. Gosto da luz do outono. É mais tênue, parece vir filtrada por óculos rayban. O céu é mais azul, a brisa é mais suave. A vida parece mais leve, menos sofrida.
Eu estava na companhia de um amigo fotógrafo para uma entrevista e, antes de entrarmos no prédio, olhei para o céu e comentei com ele: "Gosto dessa luz". Ele estava tirando o equipamento do carro e me acompanhou durante alguns segundos na observação. Ele concordou que o outono fazia bem para as fotos. Quem vive da luz, como ele, precisa estar sempre atento à natureza.

Lembrei da luz de outono, ao sair hoje de casa com o dia nublado. O outono estava temporariamente suspenso. Dia triste, úmido. Um dia sem sombras, sem a profundidade de campo de que gostam os fotógrafos. Não sei porque mas os dias chuvosos são
mais longos, espichados, terminam numa longa agonia. Agonia do dia, ele próprio registrando as marcas do sofrimento da natureza.

Tenho algumas lembranças marcadas por dias nublados e chuvosos, mas são todas lembranças de infância. Vejo a porta da sala aberta, a chuva forte, caindo e formando uma cortina, os relâmpagos, as luzes da casa apagadas e os espelhos cobertos. Minha mãe rezava e me pedia que ficasse imóvel, longe de vidraças, em silêncio absoluto, para não ser detectado pelos raios. A cada descarga, o coração disparava, vinha à boca. Quando a chuva parava, saía para o quintal e observava os canais abertos pela água no quintal de terra. Eu aproveitava a ajuda da natureza e construía diques, desviava a água para lagos protegidos por lama comprimida. Quando o sol chegava, forte, a lama endurecia e formava crostas duras, como as cascas das feridas nos meus joelhos e braços, sempre esfolados pelos tombos nos carrinhos de rolimã.

quinta-feira

"Quero ser puta"


(Na ilustração, tela da artista plástica Natalia
Fabia, da série Hooker Safari)


– Quando você escrever um livro eu quero ser personagem. Pode ser qualquer uma, até uma puta.

Não sei de onde X tirou essa ideia quando me fez o pedido. Aos dezessete anos, no último ano do clássico, nunca havia dito nada a ninguém sobre minha intenção de escrever um livro. Nem sabia que um dia viria a escrever um – na época tinha cometido apenas alguns poemas ingênuos, nenhum embrião de futura obra literária.

Com a publicação de meu primeiro romance, vinte anos depois, lembrei do pedido de X que não atendi. Estudávamos na mesma classe e ela acompanhava meu interesse pelas aulas de literatura comparada, sem saber que meu interesse maior estava nas aulas de sociologia, mais precisamente na professora de dedos longos e unhas brilhantes.

Ao fazer seu pedido, X talvez tivesse em mente as putas de Jorge Amado, sensuais e quase familiares, e não as putas vocacionais de Nelson Rodrigues. Eu conheci várias categorias de putas, se é que elas podem ser classificadas, mas são lembranças mais recentes; na época, eu não as conhecia tão intimamente e tinha na lembrança apenas as mulatas ancudas de Jorge Amado, de vestidos justos e floridos, colados ao corpo e cheirando a suor e azeite de dendê. Ou a cravo e canela. Mas Gabriela não era puta, era apenas devotada ao seu homem, como muitas putas, aliás.

Certamente a puta que X até concordaria em ser não era Geni, que cortou os pulsos e ditou suas últimas palavras ao gravador em Toda Nudez Será Castigada. Esta era uma mártir apaixonada.

Conheci putas tristes, com histórias pretensamente trágicas, mas que, na verdade, eram boas atrizes; putas que não se consideravam putas, mas eram putas; putas que gozavam loucamente e haviam descoberto uma ocupação prazerosa e remunerada. Também conheci putas religiosas, que rezavam depois de receber o dinheiro; putas casadas, que obtinham na rua o que não tinham em casa; putas-amigas, que adoravam estar com você, de conversar com você, de trepar com você e ganhar para isso.

Apesar de ter conhecido muitas putas e ter me apaixonado por algumas delas, não sou um profundo conhecer de sua alma. Também não sou um grande criador de personagens. As mulheres de meus livros não trazem um sentimento trágico ou épico do mundo, portanto em nada se assemelham a uma puta.