[pra valer mesmo e não ficar ficar a impressão que você acertou por acaso, a jogada tem que ser cantada, ou seja, dita em voz alta. Vou matar a bola sete na caçapa do meio! Se ela ricochetear nas tabelas laterais da mesa, deslizar pelo pano verde e cair em outro buraco, não vale. É cagada. E como tal deve ser denunciada pelo próprio autor, que se protege da galhofa alheia. Na sinuca não tem paradinha para enganar o goleiro. A trajetória da bola é traçada previamente e, dependendo de seu talento, a bola entra. Não existe sorte, apenas física e geometria.
Como o boxe, a sinuca também tem seu mundo subterrâneo e não florece nas mesas de salões elegantes, onde rapazes e moças bebem refrigerante e se divertem fazendo as bolas colidirem aleatóriamente contra as outras apenas para verem o efeito dispersivo e colorido, quase explosão de átomos do acaso, big-bang cósmico. Nesses salões bem iluminados e elegantes as bolas do jogo mais parecem vacas de uma manada desgarrada e sem comando. O jogo florece mesmo é nas mesas mais escondidas, de salões discretos onde os jogadores são pacientes e insones. As mesas são de boa qualidade, muitas oriundas de outros salões que já fecharam as portas, com cobertura verde tão reluzente como a grama de bons estádios, cuidada com antecedência para final de campeonato.
Alguns dos meus melhores amigos, ao longo dos anos, destinaram algumas horas de seu tempo para um jogo descompromissado, sem hora para acabar, regado com muita cerveja e conversa, nem sempre fiada. O diálogo em torno da mesa, nos momentos que antecedem a finalização de uma jogada fácil, pode ser banal, sobre amenidades, mulheres, desafetos do ambiente de trabalho, futebol. Mas, quando envolve o cálculo preciso, o silêncio necessário à concentração, o gesto calculado da mão que segura o taco, pode marcar o início de uma conversa mais séria, o compartilhamento de um segredo que estava à espera do momento solene da revelação. Ali está prestes a ocorrer um milagre. Não é à toa que a mesa é iluminada por halos de luz, como aqueles que distinguem pecadores de santos. Quando a bola branca esmurra com potência a de outra cor, que cai com um grito de dor na caçapa escolhida, o jogador que estava com o corpo inclinado sobre a mesa se apruma novamente, deixa o taco repousar ao lado da perna, e pode então dar um veredito certeiro, um conselho apropriado, uma palavra de conforto.
Só podemos falar de nós quando estamos em locais que permitem solenidade ao momento. Não se conversa em igreja, local de medidação e silêncio; não se conversa em transporte público, pois perdemos a intimidade na presença de tantas testemunhas. No salão de sinuca, só existe a mesa, envolta numa certa penumbra, coberta por fumaça de tabaco e oito bolas de marfim como testemunhas mudas e cegas.
Tive um amigo, parceiro em duas ou três noites, que me confidenciava sua felicidade por ter encontrado a mulher de sua vida. Vinha de um casamento fracassado, mas agora estava com a mulher que talvez devesse ter encontrado antes da primeira. Ele se rejuvenescia ao contar alguns detalhes de seu placar amoroso (não tantos assim, pois existia uma discrição masculina que não permitia a abertura de todas as portas). Fazia planos. Deu de pintar. Um ano depois foi esnucado por um enfarte. A bola branca, aquela que não pode nunca cair na caçapa, se desviou da rota e caiu no buraco, sem voltar para a mesa. Para ele o jogo havia acabado antes de matar a bola sete, negra como a noite lá fora.]
Como o boxe, a sinuca também tem seu mundo subterrâneo e não florece nas mesas de salões elegantes, onde rapazes e moças bebem refrigerante e se divertem fazendo as bolas colidirem aleatóriamente contra as outras apenas para verem o efeito dispersivo e colorido, quase explosão de átomos do acaso, big-bang cósmico. Nesses salões bem iluminados e elegantes as bolas do jogo mais parecem vacas de uma manada desgarrada e sem comando. O jogo florece mesmo é nas mesas mais escondidas, de salões discretos onde os jogadores são pacientes e insones. As mesas são de boa qualidade, muitas oriundas de outros salões que já fecharam as portas, com cobertura verde tão reluzente como a grama de bons estádios, cuidada com antecedência para final de campeonato.
Alguns dos meus melhores amigos, ao longo dos anos, destinaram algumas horas de seu tempo para um jogo descompromissado, sem hora para acabar, regado com muita cerveja e conversa, nem sempre fiada. O diálogo em torno da mesa, nos momentos que antecedem a finalização de uma jogada fácil, pode ser banal, sobre amenidades, mulheres, desafetos do ambiente de trabalho, futebol. Mas, quando envolve o cálculo preciso, o silêncio necessário à concentração, o gesto calculado da mão que segura o taco, pode marcar o início de uma conversa mais séria, o compartilhamento de um segredo que estava à espera do momento solene da revelação. Ali está prestes a ocorrer um milagre. Não é à toa que a mesa é iluminada por halos de luz, como aqueles que distinguem pecadores de santos. Quando a bola branca esmurra com potência a de outra cor, que cai com um grito de dor na caçapa escolhida, o jogador que estava com o corpo inclinado sobre a mesa se apruma novamente, deixa o taco repousar ao lado da perna, e pode então dar um veredito certeiro, um conselho apropriado, uma palavra de conforto.
Só podemos falar de nós quando estamos em locais que permitem solenidade ao momento. Não se conversa em igreja, local de medidação e silêncio; não se conversa em transporte público, pois perdemos a intimidade na presença de tantas testemunhas. No salão de sinuca, só existe a mesa, envolta numa certa penumbra, coberta por fumaça de tabaco e oito bolas de marfim como testemunhas mudas e cegas.
Tive um amigo, parceiro em duas ou três noites, que me confidenciava sua felicidade por ter encontrado a mulher de sua vida. Vinha de um casamento fracassado, mas agora estava com a mulher que talvez devesse ter encontrado antes da primeira. Ele se rejuvenescia ao contar alguns detalhes de seu placar amoroso (não tantos assim, pois existia uma discrição masculina que não permitia a abertura de todas as portas). Fazia planos. Deu de pintar. Um ano depois foi esnucado por um enfarte. A bola branca, aquela que não pode nunca cair na caçapa, se desviou da rota e caiu no buraco, sem voltar para a mesa. Para ele o jogo havia acabado antes de matar a bola sete, negra como a noite lá fora.]