Eles morreram quase juntos. Primeiro foi a voz que, conhecida em todo o Brasil por milhões de pessoas, nunca era acompanhada do corpo. Era uma espécie de consciência coletiva, se a vida fosse um programa de auditório. Em determinados momentos, com a TV ligada na sala e a telespectadora na cozinha destrinchando um frango, a voz anunciava um modelo novo de geladeira ou outro eletrodoméstico para o lar. Ou então "cantava" uma série de números vencedores de um teleconcurso. Quem estava na cozinha enxugava as mãos no avental e se postava diante da TV para conferir o sorteio. Mas ele não aparecia. Apenas sua voz repetia, elegre, a combinação premiada.
Quase em seguida morreu o corpo. Um corpo de uma mulher de 50 anos. Mas ela dizia que era o de uma mulher de 40. A redução na idade só foi conhecida depois de sua morte, porque os jornalistas tiveram acesso a sua certidão de nascimento. Mesmo com 50 anos, seu corpo parecia o de uma mulher bem mais jovem. Seu corpo foi generoso e, se dependesse apenas dele, ela não precisaria mentir.
Morreram quase simultaneamente uma voz sem corpo e um corpo sem voz. Talvez a voz não gostasse do corpo que tinha, não se sentisse confortável ao se ver na tela de TV, esse espelho coletivo, que amplia nossos defeitos e nunca ilumina nossas virtudes. Talvez lhe desagradasse ver revelado, depois de morto, que pintava o cabelo.
O corpo mais velho que queria ser mais jovem, flagrado numa mentira, também gostaria que esse "deslize" fosse ignorado, ou melhor, que nunca tivesse sido descoberto. Mas os tablóides (e não só os tablóides) e os programas de fofoca nas emissoras de rádio e de TV fizeram questão de dizer que ela surrupiou 10 anos de sua vida. As mulheres nunca são poupadas dos pequenos deslizes, das mentiras inocentes que nunca fazem vítimas mortais. Dez anos antes, a idade atual que ela disse que tinha, ela não teria se matado -- a polícia acredita que foi suicídio. Encontraram cartas dirigiddas à família (típico de suicidas) e veneno de rato misturado à comida. Morte dolorosa para o corpo que insistia em se manter mais jovem, contrariando os documentos do cartório, digna de história shakespeareana de subúrbio, narrada por Nelson Rodrigues.
No momento em que todos devem se calar, um pseudohumorista de TV a insultou num post no twitter. Ela que, quando mais jovem, exibia a beleza de seu rosto em novelas de TV, foi julgada e condenada por exibir seu corpo em filmes de sexo explícito.
A voz morreu de morte morrida e o corpo de morte matada (pelas próprias mãos). Só que a voz morreu apenas uma vez e o corpo continua sendo torturado como se o Brasil ainda fosse um porão escuro.
Vita, fazendo justiça com as próprias mãos, ou seja, escrevendo eu mesmo esse comentário, devo esclarecer que Leila Lopes, há 2 anos, contou que tinha 48 anos - quando foi fazer Nunca se Sábado. Ela se orgulhava de estar batendo nos 50, com o corpinho em ótima forma. De uma hora pra outra, talvez o empresário resolveu abater o fgts da idade dela.
ResponderExcluirE uma correção no seu post. Ela não "tentou" se matar, ela se matou mesmo. Tadinha.
Qual foi a piada que fizeram? Eu só ouvi os comentários.
Putz Mário,
ResponderExcluirNão tinha percebido o erro, vou corrigir. Um cara disse que ela tinha mais é que se matar mesmo. Quando recebeu críticas por isso, disse que ela tinha mais é que se f..."
Todo mundo agora é humorista, aí dá nisso.
"Todo mundo agora é humorista, aí dá nisso" 2
ResponderExcluirAs pessoas precisam sempre é de um cristo. Muito bom o texto, Luiz. Você sempre nos fazendo refletir sobre esses casos com excessiva exposição midiática, e que muitas vezes só nos é jogado.
Abrs
A voz, eu sabia quem era, mas a atriz não. Fui procurar saber quem foi Leila Lopes. Para a mulher, e principalmente, para as que usam do corpo para ganhar a vida, como no caso da atriz de filmes pornô, é muito complicado enfrentar a velhice! Algumas como a Dercy Gonçalves conseguiram levar numa boa, mas a maioria sofre muito. Outras, como no caso presente, não conseguem olhar para o futuro com a " memória" do corpo!!! que tiveram no passado.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirFilme pornô foi este que assistimos ao vivo e em cores, recentemente, em Brasília. Piada de mau gosto fez esse humorista quando tinha motivos para rir e lucrar, ao abrir uma empresa de meias e cuecas, num país de tantas oportunidades para homens tão “ilustres”. Que os mortos desse país sejam deixados em paz uma vez que os vivos locupletam-se com a nossa condescendência. Eta, povo sem memória! Obrigada, Luiz, por um texto tão sensível.
ResponderExcluirIlana,
ResponderExcluirAcho legal comentar esse tipo de assunto que, normalmente, sai muito torto nos jornais e na internet. Essa exploração das chamadas celebridades tem feito muito mal ao jornalismo.
Eduardo,
ResponderExcluirHoje em dia as pessoas são apenas o corpo físico. E a Leila não me parecia burra não. Imagina como é complicado uma atriz como ela de uma hora para outra sumir da mídia. Ela era estrela de novela da Globo.
Julieta,
ResponderExcluirÉ impressionante como a "nova mídia" desrespeita as pessoas. Aí incluo programas humoristicos como o CQC. E eles se consideram jornalistas. Sai de baixo!
Luiz,
ResponderExcluirconfesso que pensei, muito e com muito respeito, no caso dessa moça.
Na hora, me veio à cabeça "Bebel que a cidade comeu", do Inácio de Loyola.
Fui aos videos para entender melhor a pessoa que tantos boatos provocou por ter se transformado de professorinha à atriz pornô. Era mesmo esperta, falava bem, mas a futilidade, o vazio, seilá, a fez não superar a dor do luto da juventude.
Ví que havia passado por um problema sério de saúde e aproveitou o interesse da mídia nesse momento pra justificar-se. Tinha culpa. Sentia rejeição.
Bem, mas ela é só mais uma, mas, antes de tudo era uma linda menina do vestuto interior do Rio Grande do Sul que de lá saiu prá ganhar o mundo e só teve coragem, depois que se sentir fracassada e infeliz, de voltar para a casa da família morta.
Muito triste.
Desculpe se me alonguei, Luiz. Me emocionei com sua sensibilidade e processei a minha.
bjs,
lina
Lina,
ResponderExcluirVc é quem demonstra uma grande sensibilide ao colocar no "papel" o que sentiu a respeito desse caso tão humano e tão comovente. Mesmo sabendo que são poucas as pessoas que se sentem parte da grande "família humana", sinto que estou falando com as pessoas certas. Você é da minha tribo.
beijos
luiz