quarta-feira

farofas natalinas

Conversando hoje com um amigo por telefone, sobre as comemorações natalinas, ele lamentou que não aguentava mais comer a comida que havia sobrado da ceia. Todas as famílias, politicamente corretas ou não ("lembre das criancinhas da África") se esforçam para que o excesso do cardápio natalino seja absorvido nos dias seguintes pela família, pelo porteiro do prédio, pelo vigia noturno, pelos pobres nas ruas. Desconfio que falta pouco para que, um dia, ao oferecermos uma embalagem para o porteiro ele nos interrogue: "É pernil?" E, diante da resposta afirmativa, alegue que virou vegetariano ou que começou naquele mesmo dia um rigoroso regime. "Meu colesterol não está muito bom", justificará timidamente.

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Olhando o mar da janela privilegiada de um casal de amigos que mora em Santos, diante do forte do Guarujá, vi um enorme cargueiro alemão, vermelho como um extintor de incêndio, seguindo lento em direção ao mar aberto. Carregado, os containers coloridos pareciam as embalagens de presentes empilhadas no pé da árvore de Natal. No seu bojo, os marinheiros trabalhavam alheios a quem estava deitado na areia. Minha amiga prefere ver os transatlânticos, iluminados como o Rex, do "Ammacord" de Fellini. Eles chegam a "incendiar" o apartamento de madrugada. Eu estou lendo "Moby Dick" e só vejo homens com arpões e medo nos olhos.


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É impressionante como, a cada ano, ao pisar na areia da praia, tomamos a decisão de, no futuro, morar no litoral. Tenho vários amigos que, aposentados ou não, já estão concretizando o plano. Eu tenho uma razão científica para pensar assim: nós que saímos rastejando das profundezas salgadas, agora somos chamados para a segunda etapa da Evolução, seja ela qual for.

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Para quem acompanha essa viagem imóvel, me despeço momentaneamente. Nos veremos novamente em 2010, com algumas novidades. E faço votos que todos consigam dar mais um passo em direção ao mar, onde concretizaremos nosso destino.

é nóis na fita, mano

"Carro de Paulista", peça de Mário Viana, é um fenômeno de público (especialmente entre os jovens), sempre com casa lotada. Devo ter visto a peça umas três vezes e, o mais engraçado, foi acompanhar a reação da platéia, que se identificava com os personagens, um grupo de rapazes da periferia e suas aventuras de carro por uma parte da cidade que eles não conhecem, os bairros da Zona Sul. Eles querem acabar a noite acompanhados, mas só entram em fria.

A história ganhou uma versão para telecine e será exibida na TV Cultura dia 19 de dezembro às 23 horas. A direção é de Ricardo Pinto e Silva.

Mário é um dos mais celebrados dramaturgos da nova geração e já teve o privilégio de ver um de seus melhores textos, "Vestir o Pai", dirigido por Paulo Autran. Rubens de Falco, por sua vez, atuou em "Galeria Metrópole", que também vai virar filme. Quando ele encontra um tempinho, tomamos uma cerveja e colocamos a conversa em dia.

segunda-feira

primeiro morreu a voz, depois morreu o corpo

Eles morreram quase juntos. Primeiro foi a voz que, conhecida em todo o Brasil por milhões de pessoas, nunca era acompanhada do corpo. Era uma espécie de consciência coletiva, se a vida fosse um programa de auditório. Em determinados momentos, com a TV ligada na sala e a telespectadora na cozinha destrinchando um frango, a voz anunciava um modelo novo de geladeira ou outro eletrodoméstico para o lar. Ou então "cantava" uma série de números vencedores de um teleconcurso. Quem estava na cozinha enxugava as mãos no avental e se postava diante da TV para conferir o sorteio. Mas ele não aparecia. Apenas sua voz repetia, elegre, a combinação premiada.

Quase em seguida morreu o corpo. Um corpo de uma mulher de 50 anos. Mas ela dizia que era o de uma mulher de 40. A redução na idade só foi conhecida depois de sua morte, porque os jornalistas tiveram acesso a sua certidão de nascimento. Mesmo com 50 anos, seu corpo parecia o de uma mulher bem mais jovem. Seu corpo foi generoso e, se dependesse apenas dele, ela não precisaria mentir.

Morreram quase simultaneamente uma voz sem corpo e um corpo sem voz. Talvez a voz não gostasse do corpo que tinha, não se sentisse confortável ao se ver na tela de TV, esse espelho coletivo, que amplia nossos defeitos e nunca ilumina nossas virtudes. Talvez lhe desagradasse ver revelado, depois de morto, que pintava o cabelo.

O corpo mais velho que queria ser mais jovem, flagrado numa mentira, também gostaria que esse "deslize" fosse ignorado, ou melhor, que nunca tivesse sido descoberto. Mas os tablóides (e não só os tablóides) e os programas de fofoca nas emissoras de rádio e de TV fizeram questão de dizer que ela surrupiou 10 anos de sua vida. As mulheres nunca são poupadas dos pequenos deslizes, das mentiras inocentes que nunca fazem vítimas mortais. Dez anos antes, a idade atual que ela disse que tinha, ela não teria se matado -- a polícia acredita que foi suicídio. Encontraram cartas dirigiddas à família (típico de suicidas) e veneno de rato misturado à comida. Morte dolorosa para o corpo que insistia em se manter mais jovem, contrariando os documentos do cartório, digna de história shakespeareana de subúrbio, narrada por Nelson Rodrigues.

No momento em que todos devem se calar, um pseudohumorista de TV a insultou num post no twitter. Ela que, quando mais jovem, exibia a beleza de seu rosto em novelas de TV, foi julgada e condenada por exibir seu corpo em filmes de sexo explícito.

A voz morreu de morte morrida e o corpo de morte matada (pelas próprias mãos). Só que a voz morreu apenas uma vez e o corpo continua sendo torturado como se o Brasil ainda fosse um porão escuro.