quarta-feira

Dança contemporânea das cidades estranguladas

Lourdes Hernandez é uma chefe mexicana de cujas mãos nascem preciosidades da cozinha de seu país. Casada com o artista plástico e poeta Felipe Ehrenberg (ex-adido cultural do México no Brasil), ela envia por e-mail aos amigos avisos de seus rituais gastronômicos, que organiza periodicamente em sua casa. De quebra, ela nos brinda com algumas reflexões. Coloco abaixo sua deliciosa crônica, que recebi hoje, com irresistível sotaque mexicano, sobre o trânsito de São Paulo.
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Imagem da Virgem de Guadalupe, entronizada na casa de Lourdes. A foto é do blog do Marcelo Katsuki, onde ele fala dos banquetes que a chefe organiza em sua casa.
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Lourdes Hernandez
No México, durante vários anos, a gente tomava café da manhã ouvindo a Radio Educación ou, para ser mais precisa, escutando Emilio Ebergenyi. Era muito gostoso. Dava para ficar sabendo das notícias do dia além ouvir alguém comentar, sempre de um modo inesperado, corajoso e muito divertido. Ele não acreditava na comunicação vertical e sim na horizontal, de tu a tu, entre iguais.

Já morando aqui, descobrimos que o sinal de rádio não pegava em nossa casa e passei a ouvir notícias só no carro. Um dia descobrimos Rádio USP, antes da Rádio Cultura –que tem mais o jeitão do Felipe – e nossa vida foi encontrando o tom – Jobim – que precisava. Todo mundo nos recomendava a Eldorado; certo, mas o sinal ainda hoje não ajuda. E ele é um atroz ditador.

Até o dia que encontrei por acaso a Radio Sulamérica, que me ajuda a enfrentar o trânsito de São Paulo. Não vou contar como fui ficando adicta [viciada], não é importante. Mas, na semana passada, grande surpresa: os ouvintes ganharam uma caixa de voz para deixar mensagens. Ainda não está claro para mim como os motoristas se comunicam sem infringir as leis que impedem o uso do celular no carro. Imagino que eles, já livres de um engarrafamento daqueles, encostam num lugar permitido e avisam ao resto dos mortais que não devemos pegar aquela rota suicida.

Ô, fico muito agradecida!!! Mas voltando a essa nova ferramenta da rádio do trânsito, estou realmente tocada. Fulanito, Zutanito e Menganito ligam, se apresentam, “sou Zutanito Silva, acabei de fazer o trajeto tal e tal e fiz em só 8 minutos, mas tem ali na rua tal e tal uma caçamba que pode dar problemas, muito obrigado, vocês fazem um trabalho demais!” E eu só posso agradecer a Deus que Zutanito Silva haja me avisado do perigo duma caçamba traiçoeira que, de um momento a outro, decida sair andando pela via perigosamente. Mas o que me tocou mesmo foi o recado de Zé dos Patines, que depois de apresentar-se com linda voz e falar de alguma via no fim do mundo com dor de cabeça e pesadelos, falou com vontade de não desligar nunca mais essa ponte de comunicação: “olha, gente, obrigado por nos ajudar, vocês fazem minha vida possível” O resto do mundo desapareceu para mim. O mais desolado dos ouvintes acabava de se despir para habitar na frente de todos nós sua bela solidão.

Agora escuto, vivo alerta aos recados de voz da rádio, pensando se ele vai aparecer um dia de novo, com sua voz envelhecida no trânsito e nova na ingenuidade de ouvir-se a ela mesma na magia de poder falar para muitos, tantos, algo importante e do interesse comum e amargo como amargo é saber que andamos em círculo e sem saída, essa dança contemporânea da morte que é o trânsito das cidades estranguladas.

Um comentário:

  1. Quando eu tinha escritório perto doLargo de São Francisco, subia a 23 de maio com o radio ligado e de vez em quando telefonava para dar noticias. Cheguei a ganhar um prêmio dessa rádio. Nome??? Esqueci. Bjkª. Elza

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