quarta-feira

[o eu outro]

O Enigma de um Dia, de Giorgio De Chirico, 1914. Acervo MAC

[você já quis ser outra pessoa? Não apenas ter outro corpo por razões estéticas, ser mais alto, mais magro, enfim, ser mais bonito. Falo em ter o corpo e a alma de outra pessoa. Ser o outro, o desconhecido, aquele com quem cruzamos na rua e do qual não tínhamos, até aquele momento, conhecimento da existência. Às vezes me vejo caminhando por lugares onde nunca estive, ou que reconheço por fotos de revistas, guiando um rebanho de cabras num terreno pedregoso, onde cresce um capim muito ralo e amarelo, quase seco, que alimenta os animais apenas o suficiente para mantê-los vivos e produzindo leite. Animais que há gerações se acostumaram com o pouco que conseguem tirar dessas pedras, mas que retribuem com leite quente e espumante. Eles parecem resignados àquelas paragens inóspitas. Quando o sol está muito forte, sem árvores que produzam sombra, descansam na entrada de cavernas úmidas, na verdade buracos escavados em encostas onde o solo é menos pedregoso.

Já me vi, em sonho, falando fluentemente uma língua estrangeira que, no meu eu presente, mal consigo balbuciar ou acompanho aos trambolhões, envergonhado por estar cometendo erros grosseiros, fruto mais da timidez do que da ignorância. Já me vi também imbuído de uma coragem até então desconhecida, que me levava a percorrer becos escuros e manter o passo firme mesmo com ruídos suspeitos ao redor. Ou com o silêncio absoluto, que paralisa a respiração.

Numa das primeiras vezes em que pensei estar na pele de outro, fazia uma viagem noturna de ônibus e olhava pela janela através do breu que se adensava a medida que os faróis dos carros desapareciam. Em pontos mais distantes, transpondo as cercas de arame farpado, que impedem os animais de criação de cruzar a pista, vi lampejos pálidos, como velas inúteis na escuridão. Imaginei quem estaria protegido e aquecido sob aquela luz e o invejei por ter, naquele momento, a consciência plena de que estava vivo. O ônibus, às escuras, com o ronco do motor mantendo um zumbido constante, se deslocando veloz na noite profunda, era um mundo paralelo que só passaria a existir de fato no momento em que parasse em algum posto de abastecimento. Aí sim, no meio daquela pequena aglomeração humana, num local afastado (como conseguiram chegar ali e ali permanecer?), passaríamos a existir.]
Quero escrever um pouco mais amanhã ainda sobre esse tópico...

6 comentários:

  1. Sou eu novamente.
    Invejo sua escrita.
    bjks
    Miriam

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  2. Pensei que só eu era estranha de me imaginar outra pessoa. Este seu exercício do ônibus eu faço às vezes. Olho para as pessoas que cruzam comigo e me pergunto se eu fosse alguma delas que acabaram de passa por mim. (sorrisos... Lembrei de pensamentos que tinha quando era criança. Lembro das quantas vezes eu quis ser minha irmã por alguns minutos, para entender como ela funcionava. Acredito que minhas inspirações infantis ainda não passaram...)

    =)

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Obrigado Miriam!!.

    Graci, como você pode ver, tem gente tão estranha (ou mais) quanto você.... =)

    Tomara que suas inspirações infantis nunca passem. Você ainda vai precisar muito delas. Acredite em mim....

    Fiz uma burrada e removi meu comentário anterior sem quer. Mas era o que está aqui agora... Sorry...

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  5. Meu exercício quando estou meio mal é se preferiria ser uma ou outra pessoa que passa. Em geral, após avaliar várias,incrivel, chego a conclusão de que ruim comigo, pior sem mim.

    Ex-critor, obrigada pela visita. Você é um camaleão, cada hora com um layout.
    abc
    Lina

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  6. Lina,
    ainda quero fazer a letra para uma foto sua....

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