quarta-feira

Forja de campeões


Mailer: pugilista das letras americanas, segundo a Economist

Gosto de engraxar os sapatos com os engraxates da praça da Sé. Talvez o momento em que sentamos na cadeira do barbeiro e na do engraxate seja para nós, homens, o pouco de que dispomos para refletir sobre nós ou para conhecer melhor aquele profissional que está sempre segurando uma tesoura ou um pano encardido e lustroso de graxa preta e marrom.

Descobri que meu barbeiro estava com câncer quando a fase pior da doença havia passado. Ele é um menino comparado a mim. Tem pouco mais de 30 anos e corta meu cabelo e faz minha barba desde que ele tinha 17. Eu notara que ele estava mais magro, com o cabelo mais ralo, mas não perdia a disposição para o trabalho. Quando conversamos sobre o assunto, ele me disse que o pior já havia passado e que começava a se restabelecer. Fiquei sabendo de seu sofrimento quando ele já não sofria. Hoje ele está bem e conversamos com mais frequência que no passado, quando ele era apenas o homem que segurava uma tesoura ao meu lado.

Outro dia, na cadeira de um engraxate com quem eu ainda não havia engraxado os sapatos, ele me falou expontaneamente de sua vida de imigrante, das dificuldades de formar e manter a família com o fruto do seu trabalho. O que mais me interessou foi a paixão com que falava do filho adolescente que estava aprendendo a lutar boxe numa academia para jovens na Mooca, onde começa a Zona Leste de São Paulo. Me disse que o menino está se desenvolvendo muito bem e queria continuar a carreira profissionalmente. Me convidou para vê-lo lutar num dia especial em que vários alunos se exibiriam. Não fui, apesar de ter ficado tentado. Há muito tempo tenho vontade de visitar esses locais onde jovens pobres lutam boxe, conhecidos como forja de campeões. Esse nome exerce um fascínio sobre mim e resume o que acontece naquele espaço cercado por cordas e onde muitos sonhos desabam.

O boxe é um esporte curioso. Tenho uma amiga, muito delicada, que é fanática e acompanha lutas pela TV. A primeira imagem que fica é a de que o esporte é violento, presenciado por torcedores sádicos. Também tinha essa impressão. Nunca gostei de lutas violentas, quando o risco enfrentado por um dos pugilistas é evidente. Não gosto de ver um homem ser humilhado, jogado ao chão como um animal abatido. Mas não deixo de torcer, mesmo contra toda a lógica do esporte, para o lutador mais franzino, mais desajeitado, com o calção mais feio e rosto mais desesperado. Estou sempre ao lado dos sofredores, dos humilhados, dos que têm fome por justiça. Muito raramente eles ganham, mas pelo menos tentaram.

Sempre que a TV mostra lutas antigas de Muhammad Ali ou de Ray Sugar Leonard eu vejo. Alí, mais que dois homens se golpeando, vejo um balé, uma troca de golpes que pareceria uma troca de carinhos se os punhos não acertassem. Vi um documentário sobre a histórica luta de Ali contra George Foreman, em 1974, no Zaire, que ele venceu contra todas as expectativas. Antes de ver o filme eu havia lido A Luta, de Norman Mailer, que acompanhou os bastidores e escreveu um livro-reportagem sobre o combate. Ali chegou ao Zaire derrotado e saiu de lá coroado. Ele debochou do oponente, mais forte que ele, desde que chegou à África. Dizia que venceria Foreman porque era mais jovem e mais bonito. No ringue, ele pedia para Foreman bater. Foreman batia enfurecido, disposto a acabar com o arrogante. Quanto mais batia, mais Ali ria. Parecia inabalável. Ali apanhava, mas também fugia graças a seu jogo de pernas. Foreman bateu tanto que cansou. Então Ali começou a lutar. Foreman perdeu para si próprio, para o seu talento, para a sua força física. Ali ganhou, como ele disse, porque era bonito.

Ernest Hemingway também adorava bebidas e emoções fortes. Sem o jogo de pernas de Ali, foi a nocaute no meio do combate.

2 comentários:

  1. Mto bom este texto, de uma sensibilidade paupável. Gostei muito disso. E vou continuar a ler, mas não vou mais comentar os textos, hehe... leitorazinha pedante esta aqui!

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