quinta-feira

[a mais completa solidão]

[hesito antes de pegar o telefone e ligar para amigos que são escritores, dramaturgos, roteiristas. Temo que o toque do telefone os despertem do transe em que possam estar mergulhados e os façam perder a concentração, afugentando alguma boa idéia que estava quase se materializando no momento em que soou a trombeta. Por causa disso, acabo falando pouco com eles e, quando nos encontramos em alguma festa ou evento, tento arrancar deles tudo o que posso. Quero saber dos novos projetos em que estão envolvidos, como estão tocando a vida. Com os amigos jornalistas, acostumados a trabalhar nas condições mais caóticas possíveis, sou menos cauteloso. Sei que conseguem escrever e falar ao telefone quase simultaneamente. Escrevem com tanta rapidez que, se não soubesse que são profissionais cuidadosos, poderia dizer que são displicentes. Marçal Aquino escreve com um fundo musical de jazz, preenchendo, à mão, folhas e mais folhas de caderno. É solidão com trilha musical. Não sei explicar, mas o jazz conduz a um estado de relaxamento mental capaz de abrir portas sensoriais. É uma músical mais cerebral que coronariana.
No fundo, quando escrevemos abrimos portas ou janelas do cérebro para que pequenos seres saiam lá de dentro e conversem com o leitor, contem suas histórias, dividam suas experiências. Raramente escrevo ouvindo música, porque acabo voltando mais minha atenção para as notas musicais e notando passagens que antes não havia percebido. A música me pede exclusividade. Ela também desliga alguns circuitos que me mantém preso à realidade e permite que eu divague. Nesses momentos, pode surgir uma idéia interesante ou até estapafurdia para ser trabalhada mais tarde. Mesmo que seja abandonada por completo, ela aparece e pede para ter uma oportunidade.
Aqui eu escrevo muitas vezes em meio à agitação do trabalho, mas também me isolo em horários mais tardios. Não sei dizer em que situação produzo mais e melhor. Mas, como disse certa vez Italo Calvino, acabo adiando a escrita sob o pretexto de que preciso usar o tempo em outras tarefas do dia-a-dia. E sempre procuro tarefas para me ocupar, como uma criança mergulhada em atividades que lhe roubam o tempo para impedir que ela faça o que mais gosta: brincar. ]

5 comentários:

  1. Ex-timado,
    esse medo de ser, sem querer, invasivo com os amigos, muito facilitou com o email, ou mesmp blog. É uma relação não compulsória. Melhorou prá mim.
    Quanto a escrever com música, instrumental, ainda tudo bem, já com letra, complica minha concentração.Não sei sicronizar muita coisa, como dizem as mulheres poderem.

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  2. Ola querido amigo
    Que texto agradavel.
    Como vivo cercada de muita gente, desenvolvi uma capacidade de isolamento tal que escrevo no meio de gente falando,por exemplo, agora meu filho acaba de fazer uma pergunta...mas sinto falta de um silencio genuino. Um silencio externo onde meus barulhos possam ter espaço e se expandir. Vivo um tanto espremida.
    Preciso de espaço...Não vejo nenhum merito em tanta capacidade de adaptação. Foi mesmo falta de opção.
    SOCORROOOOOOO!!!!!!!!
    Careço de isolamento.
    bjks
    Miriam

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  3. Lina,

    Também não consigo me concentrar com música com letra, me disperso muito. Mesmo com o e-mail tenho evitado "incomodar", porque a pessoa precisa responder... As pessoas que eu mais gosto são aquelas com as quais eu menos falo... Mas os reencontros são sempre muito efusivos.

    Gostei do ex-timado.
    beijos

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  4. Miriam,
    Ter um espaço só seu ajuda, como a Fortaleza da Solidão, onde o Super-Homem buscava refúgio nas horas de dificuldade (mas as meninas não liam o super-homem). A dele ficava no Ártico, inóspito, gelado. Mas prefiro criar um espaço aconchegante, com tudo à mão: canetas, lápis, lápis de cor, folhas de papel, alguns LPs....
    beijos,

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  5. Quanto a sua afirmação sobre ler o Super -Homem, informo , que não só lia o Super, como Capitão Marvel, O Fantasma e o que mais gostava era do Mandrake!
    Lia tambem, Luluzinha, Lili a garota Atomica, Pimentinha, Saci Pererê do Ziraldo, e ate hoje adoro a Monica o Cebolinha....
    Achava o Pato Donald e sua turma meio sem graça;
    Mas tenho sim minha caverna de sossego: meu consultorio, onde fico bem a vontade e só entra quem eu permito!
    bjks

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