No céu, velando por nós, Cidinha, a santa neguinha pescada do fundo de um rio; na terra, puxando nossa orelha quando fazemos malcriação, Dona Canô. Da janela azul de sua casa em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, ela acompanha, sorridente, seus filhos brincando na rua. Aos 102 anos, continua atenta a cada movimento que fazemos, como a mãe do filme “Édipo Arrasado”, de Woody Allen, onipresente nos céus de Nova York. Quando precisa resolver um problema muito grande, Dona Canô telefona diretamente para o presidente da República. Provavelmente vai se encontrar com ele no feriado da Consciência Negra, na próxima sexta-feira (20/11), em Salvador, para limpar a barra do filho cantor.
Quando estive exilado no interior, enquanto cursava a faculdade, encontrei uma segunda mãe, muito parecida com dona Canô. Era Dona Didi, mãe de João, Nana, Isa, Zé e Dito. João estudava jornalismo em minha turma. Era sobrinho de um poeta local (o poeta municipal de que falava Drummond?), tocava violão, como seus outros irmãos, que tinham um gosto apuradíssimo por música brasileira e literatura. As irmãs cantavam.
Eu ia pouco à faculdade, pois já estava trabalhando no jornal da cidade. Depois do fechamento, ia para a casa do João, onde filava a bóia e ficava ouvindo os LPs da série editada por Marcus Pereira, revelando a música regional brasileira pouco conhecida no sudeste. Foi lá que ouvi Elomar pela primeira vez, um arquiteto que vivia no sertão, criava bodes e cantava como um menestrel. Conversávamos até tarde da noite e dona Didi estava sempre presente, sentada em sua cadeira (era de balanço?), quase sempre em silêncio. Um dia ela me disse: “Homem tem que usar barba ou bigode”. João e Zé tinham bigode e Dito, barba. Mais de trinta anos depois, quando penso em tirar a barba, lembro do conselho de Dona Didi e vacilo.
Tenho uma teoria de que temos sempre duas (ou mais) mães, que nos confortam quando a nossa está longe ou já se foi.
Quando era criança, uma vizinha de minha família, Dona Lourdes, era uma segunda mãe para nós. Era uma negra sorridente, parecida com a Ella Fitzgerald. Era ela quem matava as galinhas e os patos que minha mãe criava, mas não tinha coragem de sacrificar. Ela é madrinha de minha irmã e ficou muito abalada com a morte de minha mãe. Seu filho mais velho, Miltinho, foi o melhor goleiro que vi em ação na infância. Dava gosto vê-lo voar na direção da bola e cair macio no chão de terra batida, ressecada.
Dona Didi morreu com mais de 80 anos e minha segunda mãe, hoje, é minha última tia carioca, que ainda tem muita lenha para queimar. Mas isso não me impede de tomar emprestado Dona Canô, sempre que a saudade aperta.
Que lindo tudo isso! Que bom lembrar dela!abraços,tudo de bom,chica
ResponderExcluirNão gosto da Dona Canô, acho que ela uma velhinha dominadora toda a vida.
ResponderExcluirObrigado Chica!!!
ResponderExcluirEster,
Não sei se a Dona Canô é dominadora. Ela é matriarca, aquelas mulheres fortes que cuidam de tudo. Minha avó materna era assim, uma presença forte na família. Cega como Borges e sabia de tudo o que se passava em volta. No final da vida ela ficou uma velhinha muito divertida, meio destrambelhada.
Não sei ser se ser matriarca e cuidar de tudo é ser forte ou na verdade, muito fraca.
ResponderExcluirA Canô é narcisista, tipo a mãe do Cazuza, não é à toa que Caetano e Bethãnia apesar de fortes herdeiros desse narcisismo, parecem duas criancinhas na frente dela. Eu não quero jamais meus filhos com essa postura diante de mim, como seu fosse uma santa. Credo.
Ester, vc é mãe, mas não entende xongas de mãe nordestina, que tem muito a ver com mãe italiana... O matriarcado é um puta poder, inegável e bastante atacável. Engraçado que na minha família mais ampla tem alguns exemplos de matriarcas, mas não foi regra geral. Deve ser porque pernambucano não gosta dessas frescuras... rs.
ResponderExcluirVita, belo e sensível texto sobre as mães que adotamos... Tem os irmãos... os primos... os que adotamos, em geral, tendem a ser melhores que os de sangue, aqueles que sempre tentam nos convencer a gostar porque 'são da família'.
Eu só não sei se adotaria a Canô como mãe, nem a mãe do Cazuza... E sempre me pego pensando: cacete, aos 102 anos vc não tem mais com quem trocar idéias do passado... e, convenhamos, aos 102 vc tem pouco a pensar sobre futuro.
Espero que quando eu tiver 102 anos vc ainda me acompanhe numa cervejinha... E tenha boa memória para me contar fofocas que são off agora.
ResponderExcluirQue bonito.
ResponderExcluirTemos mesmo a familia de sangue e a escolhida.
Gosto tb do Elomar. Ele é parente do pai da minha filha mais velha, lá de Vitória da Conquista.
Lina,
ResponderExcluirEsse mundo é muito pequeno. Gosto muito do Elomar. Vou procurar um vídeo dele no youtube e vou postar.
beijos
Ah, não, isso não... Confesso que desde novinho nunca tive muita paciência pro Elomar e aquela coisa de barrancas do rio Gavião... Acho bacana o trabalho meio menestrel, meio medieval, coisa e tal, mas nunca me apaixonou. Deve ser a minha urbanidade galopante.
ResponderExcluirBelo texto, meu rapaz!
ResponderExcluirEster, vc não seria aceita numa família italiana com essas ideias modernas!
Mãe é mãe, qto mais mãe melhor! Depois se paga a terapia...
Amei o puxão de orelhas de Canô no filho sessentão!
É isso mesmo Ana, depois se paga a terapia.
ResponderExcluirbeijos
Ana e Vita
ResponderExcluirO que eu já gastei com análise dava para comprar um i30, um apezinho, viajar várias vezes para a Europa e ainda sobraria um troco.
Mesmo assim acho minha mãe mineira, muito melhor que a Canô.
Deus me livre, se a baiana tivesse sido minha mãe hoje eu estaria chamando o Lula de analfabeto e levando bronquinha em público, Deus me livre.
Mas estaria ganhando rios de dinheiro, Ester... compondo coisas bonitas, rebolando num palco... ou sem tingir o cabelão grisalho, que nem a Bethânia... ou caindo de cachaça, que nem o irmão deles, acho que Roberto... tá sempre nos shows da Bethânia, um pudim de uísque ambulante.
ResponderExcluirVamos e venhamos, eu morreria de vergonha de levar piti público de mãe. Credo.
Esse é o preço, Mário? Então prefiro ficar com minha mãe mesmo. Apesar de meu cabelo também estar branco, não sou um pudim de uísque.... No máximo um manjar.....
ResponderExcluirEster,
ResponderExcluirFazer terapia é chique. Cai bem no seu currículo. Veja meu caso, que nunca fiz terapia e sou discriminado até hoje. O Mário ainda exorciza os demônios dele no palco (se bem que são demônios muito boca-suja). Os meus, no máximo jogando paciência no computador...
Puxa, que alienação. Não sabia da história do Caetano, nem do telefonema de Dona Canô.
ResponderExcluirOra, o Caetano fala à midia como quem fala à mesa de um boteco. Isso não é ruim, concordemos ou não com suas afirmações.
Quanto à Dona Canô, aos 102 anos, pode-se tudo!
Condena-la é como ir contra a cultura matriarcal nordestina. Ou alguém pensa em reciclar, modernizar a centenária Dona Canô?
Bem comparado, Luiz, com a mãe do Woody Allen
nos céus de Nova York, depois de sumir nas mãos de mágico.
Lina,
ResponderExcluiressa história do Caetano acabou sendo até engraçada pela repercussão que deu e pelas manifestações da Dona Canô.
Beijos
Lina
ResponderExcluirAcho que aqui também rola conversa de boteco, começamos nos pré-socráticos, passamos por Freud e fazemos a crítica do pós-modernismo, tudo tendo como pretexto a pobre Canô.
Não sei se aos 102 pode-se tudo.
Sei que aos cinquenta a tolerância com celebridades é zero, mesmo. A gente chuta o politicamente correto e ousa fazer a crítica dos velhinhos também.
Ester,
ResponderExcluira legislação brasileura proteje o cidadão após os oitenta. Com a sobrevida do brasileiro aumentou , acho exageiro. Muitos brasileiros têm chegado aos 100 lúcidos.
Agora, querer que essa pessoa reveja seus valores, a essa altura do campeonato, já é demais.
Autoritária? impertinente?
Esse problema é do filho, não nosso.
Quem não pagou mico de mãe?
Acho bonitinha a atitude dela. Singela.
E, convenhamos, Dona Canô não é apenas "uma celebridade".
Desculpe, Ester. Questão de opinião.